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Energias fósseis (Cabo Delgado) e a guinada ecológica

ensaio de Severino Ngoenha, Thomas Kesselring e Carlos Carvalho

Quando a Noruega descobriu as reservas de petróleo no Mar do Norte decidiu tudo fazer para evitar a maldição holandesa, também chamada a maldição de recursos, que tinha levado os Países Baixos, com a descoberta do gás natural, a concentrar toda a sua economia sobre ela com consequências nefastas. A decisão da Noruega foi de caracter político e teve um consenso democrático alargado  por parte  dos cidadãos. Moçambique sucumbiu à doença holandesa,  concentrando o essencial das suas previsões económicas na miragem do maná do gás. Esta decisão foi apanágio exclusivo de uma parte da elite que se arroga, de maneira autocrática, o direito de decidir pela vida de todos.

   A expressão “maldição dos recursos” ganhou novos contornos e passou a significar os  assaltos selvagens de predadores (máfias internas, multinacionais, aventureiros, mafiosos, gangsters, estados desonestos em conluio) contra países – sobretudo africanos – ricos em recursos. A guerra de Cabo Delgado mostra que Moçambique não conseguiu escapar também a esta segunda maldição. Existe uma terceira maldição mais substancial e objectiva, ligada às percepções temporais   das condições do mundo que se estão também a abater sobre nós – como sobre outros países da região como a Tanzania, Kenya, Uganda – que fazem da nossa exploração de recursos fósseis extemporânea e anacrónica: a virada ecológica.

    Durante centenas de milhares de anos, o Homo Sapiens era de tal maneira pouco presente  sobre a terra que os poucos que existiam só  precisavam, para garantir o seu bem-estar, de uma  muito pequena fracção daquilo que a natureza produzia (Yuval Noah Harari);  o planeta estava quase “vazio” de seres humanos. Hoje, mutatis  mutandis, a Terra está  saturada de gente, com necessidades díspares e  sempre mais crescentes.

   A ideia básica de uma economia sustentável é não extrair da natureza mais do que ela produz durante o mesmo lapso de tempo. Se extrairmos em excesso causamos estragos e devemos esperar a recuperação dos recursos naturais. Cientistas estimam que em 1970, pela primeira vez, a quantidade daquilo que a natureza produz durante um ano foi consumida pelos humanos no mesmo período de tempo. Dez anos depois os humanos tinham atingido o overshot day (dia  da ultrapassagem) em 4 de novembro; em 1990 tal dia foi a 11 de Outubro; em  2000 foi a 23 de Setembro e em  2021  o “dia de ultrapassagem” deu-se já no meio do ano, isto é, desde há meio século a humanidade vive com um débito para com a natureza.

     Não obstante, o número de seres humanos continua a crescer rapidamente e a base material do bem-estar social está a melhorar em muitas partes do mundo, o que significa que  estamos a explorar as matérias-primas disponíveis a um ritmo cada vez mais intenso e  mais rápido.

    Vivemos de produtos biológicos – alimentos vegetais, carne, peixe, cogumelos – que têm os seus ciclos de crescimento . Usamos e destruímos muita madeira queimando florestas, o que quer dizer  que  a sua quantidade está a diminuir – pelas nossas mãos – mais rapidamente do que a natureza consegue reproduzi-la, mesmo com a ajuda de projectos de florestamento;  fazemos uso de reservas naturais que se acumularam no solo durante milhões de anos – petróleo, gás natural, carvão, metais- que não se regeneram.

    Pouco tempo depois da primeira extracção de petróleo foi criado o motor de combustão interna que serviu de base para as indústrias do automóvel e da aeronáutica. Quase ao mesmo tempo, a investigação sobre a electricidade tornou possível o transporte de energia para longas distâncias. O número de carros e aviões multiplicou-se a um ritmo vertiginoso e levou à pilhagem das reservas de energia fóssil cada vez mais rápida.

     A sociedade humana sempre fez parte da natureza e a economia sempre fez parte da sociedade. Mas durante muito tempo a economia não valorizou os produtos naturais. Baseando-se nas teorias de John Locke, Adam Smith e David Ricardo (dos séculos XVIII e XIX), os economistas consideraram o trabalho e o engenho humanos como as únicas fontes do valor ao qual os serviços da natureza não acrescentam quase nada (Thomas Pimenta, O Capital no Século XXI). Dado que destruir o que não tem valor é inócuo, o capitalismo transformou-se numa poderosa máquina de destruição. Partes cada vez maiores da natureza foram destruídas, desmembradas, queimadas: metais, minerais, cristais, petróleo, gás natural, madeiras preciosas, florestas, cardumes de peixes, animais selvagens. Só agora nos apercebemos que a fecundidade da natureza está a diminuir devido aos danos que lhe são infligidos e nos fazem descobrir o seu grande valor conómico (de preservação) que  aumenta, à medida que a sua destruição avança.

     As queimas de carvão e petróleo (em automóveis, aviões, motores de navios, sistemas de aquecimento, centrais eléctricas) levam ao acúmulo de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera e, em consequência, ao aquecimento global, cujos efeitos começamos apenas a sentir: derretimento de quantidades  gigantescas de água congelada  nas glaciares das montanhas, da Gronelândia, dos pólos e não só, que elevam os níveis do mar. No século 20 este subiu 10-20 cm e, segundo cálculos científicos, subirá pelo menos outros 20 cm até o final deste século. Se todo o gelo da Gronelândia derreter, o nível do mar subirá mais de sete metros. Se o gelo na Antárctida Ocidental também derreter, o mar subirá mais 5 metros. Ninguém sabe em que medida as geleiras no resto da Antárctida (com mais de 3000 m de espessura no ponto mais alto) permanecerão estáveis e por quanto tempo. Se derreter completamente, os oceanos subirão mais 53 m. Em todo o caso o gelo, em todo o lado,  já está a derreter mais depressa do que o Painel Intergovernamental sobre as Mudanças tinha previsto.

    Se os  glaciares derreterem, o excesso de água e, depois, a falta dela tornar-se-á numa nova pandemia global; os rios numa primeira fase, com um aumento incontrolável e desmedido do seu caudal, destruirão tudo na sua passagem; na segunda fase, os rios, não tendo já a sua origem assegurada, os glaciares nas montanhas altas, ficarão com um caudal reduzidíssimo levando a escassez de água potável. Por outro lado os oceanos estão a aquecer e  a tornar-se mais ácidos o que leva à extinção acelerada dos recifes de corais. Para além disso, a evaporação dos oceanos acelera-se e a atmosfera absorve maior quantidade de água. Daí resultam ciclones mais frequentes e mais fortes que, infelizmente,  nos últimos anos assolaram Moçambique – mais do  que El Salvador, Filipinas  ou os EUA.

    Nas regiões árcticas, na Sibéria, o congelamento do solo está também a derreter o que  provoca frequentes colapsos dos solos e tornam as casas (que ficam inclinadas ou desabam) inabitáveis. Para além disso, grandes quantidades de metano são libertadas para a atmosfera e aceleram ainda mais  o efeito de estufa. Nas montanhas, o gelo nas fendas que derrete e se  recongela alternadamente, separa as rochas como uma cunha e causam quedas de grandes rochas. As vias de tráfego nas áreas afectadas devem ser fechadas e as povoações evacuadas. 

    Temperaturas elevadas provocam stress nos animais o que os levam a migrar e as plantas que não conseguem se deslocar ( a não ser por locomoção interposta) riscam a sua extinção. Nunca na história se tinham queimado áreas de floresta tropical tão grandes e em tantas regiões diferentes como no presente. Isso se deve, de um lado, às mudanças climáticas e, do outro, à conversão das florestas em pastagens ou terras agrícolas. O consumo de carne está a aumentar rapidamente em países emergentes (China, Índia, Brasil, África do Sul) o que resulta em  mais milho e soja plantados para nutrição  do gado; o consumo de carne é uma das ameaças maiores para as florestas tropicais. Na carnofágica Europa, a verdadeira geração da viragem se recusa a continuar a ser naturofágica, por isso o número de vegetarianos e até veganos (que evitam produtos animais em geral) está em franco crescimento. 

     Como as alterações climáticas, a redução da biodiversidade também faz parte dos efeitos colaterais do caminho que a civilização humana tomou no seu processo  evolutivo. Quando uma espécie desaparece nunca mais volta, o que significa um ulterior empobrecimento . Não são só os  ursos polares, mas as traineiras dos espanhóis, russos, japoneses e hoje dos chineses empobrecem o mar e levam ao desaparecimento de muitas espécies de peixes, e com eles milhões de pescadores soçobram na miséria.  As abelhas estão morrendo em todas as partes do mundo. Em algumas regiões da China, onde as abelhas desapareceram completamente, os trabalhadores têm de polinizar as flores em trabalho manual laborioso, tedioso e ineficiente. 

    Nas zonas temperadas, a população de insectos caiu quase para metade. Esta queda prejudica os pássaros que se alimentam de insectos. A fertilidade do solo sofre, quando organismos importantes se tornam raros ou se extinguem. Suspeita-se que o excesso de produtos químicos – pesticidas, fungicidas, insecticidas – cuja produção aumentou  com o desenvolvimento da engenharia genética (modificação genética das plantas) seja a causa principal desta catástrofe.

    O plástico começou a ser fabricado em 1907. Um século mais tarde, esta substância sintética já alterou fundamentalmente a face das paisagens, cursos de água e mares; o plástico – cuja decomposição pode levar centenas de anos – está espalhado por toda parte do mundo e é responsável pela morte de milhares de animais marinhos, que o confundem com comida.   

     Quid da responsabilidade? A ONU, fundada após a Segunda Guerra Mundial para evitar novas guerras mundiais e de extermínio, tem hoje uma nova  missão: assegurar que o efeito estufa seja reduzido e a perda de espécies seja travada o mais rapidamente possível. 

    A maior parte da crise ecológica provém  dos países altamente industrializados.  O efeito estufa tem as suas raízes nas queimas de combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural – que iniciou no século 18 e acelerou nos séculos 19 e 20. Quem pecou primeiro foram os antepassados dos Europeus, que porém pecaram venialmente porque  ignoravam as consequências dos seus actos. A situação hodierna é diferente. Desde há 40 anos sabe-se, ou pelo menos suspeita-se (Hans Jonas), que a destruição dessas substâncias terá um efeito desastroso sobre o clima. Paradoxalmente, e de uma maneira culpada, o seu uso e abuso  intensificou-se nos últimos trinta anos. 

    Quanto maior é a prosperidade material, maiores são as  emissões de gases que criam o efeito estufa. Por ano cada americano liberta uma média de 15,5 toneladas de CO2 na atmosfera, cada alemão  9,5 toneladas  e cada Sul africano  6,9. Os primeiros classificados são os Emirados Árabes com 20, o Qatar com mais de 30 toneladas por pessoa por ano. Os  campeões nas emissões são os três milhões de americanos mais ricos que, supostamente, emitem 318 toneladas de CO2 por pessoa e por ano (Von Weizsäcker, 91).

    Moçambique, apesar de figurar – com apenas 0,12 toneladas na média das emissões – entre as mais baixas do mundo, faz parte dos países mais atingidos pelas suas consequências. Nas cidades da Beira e Quelimane, situadas ligeiramente abaixo do nível do mar,  Idais e  Kenets   riscam não ser fenómenos do passado e ocasionais mas constantes, com riscos múltiplos para sobrevivência das populações e para o aumento do fenómeno chamado de refugiados ambientais; a não ser que consigamos protegê-las com barragens altas ou grandes diques. Mas onde é que vamos buscar  dinheiro para isso? 

    Em teoria  Moçambique – juntamente com países como a Indonésia, Bangladesh… – deveriam exigir por um lado, que os campeões das emissões financiem os seus diques e, por lado, ao invés de permitir a  construção de mansões inúteis nos belos horizontes e nos subúrbios de expansão espalhados pelo país fora, levá-los a financiar este empreendimento de salvação nacional…

   A sociedade global tardou em dar-se conta dos perigos que as mudanças climáticas acarretam consigo apesar dos pré-avisos dos especialistas  ( exemplo de  Lester Brown desde  2011). Mas lentamente os investidores despertaram da miopia das teorias económicas  dos séculos XVIII e XIX e os stocks de carvão no Índice Dow Jones dos EUA caíram 90 por cento entre 2011 e 2016, os stocks de petróleo e gás caíram um terço entre 2014 e hoje. O maior fundo de hedge do mundo, Blackrock, pressiona as empresas de extracção de petróleo e gás a mudar para a promoção de energias renováveis – especialmente as energias solar e eólica – o mais rapidamente possível. As organizações não-governamentais pressionam os bancos para deixarem de  financiar empresas petrolíferas. “A longo prazo, as empresas de carvão e petróleo estabelecidas irão se juntar à viragem épocal que atravessamos e abandonar as energias fósseis ou irão à falência.” (Von Weizsäcker ). 

    Para além das más previsões e planificações económicas moçambicanas (seguidas de debates absurdos sobre um fundo soberano que ainda não se tem nem se sabe se vai ter), da guerra em curso provocada por máfias e bandidismo interno e internacionais em conluio, existe hoje um consenso internacional em volta da necessidade de uma guinada ecológica e o consequente banimento das energias fósseis.

    Os 54 mil milhões de dólares da extração e liquefação de gás em Cabo Delgado são hoje uma miragem: o projeto vem demasiado tarde pois a extracção de combustíveis fósseis é coisa do passado; a era da produção rentável do petróleo acabará em breve. É uma tragédia que os grandes depósitos de gás no norte de Moçambique não tenham sido detectados 50 anos antes – eles teriam ajudado a alavancar o Moçambique independente! 

     Então o que fazer? Podemos teimosamente – e de uma maneira que Freud classificaria de demência – continuar num caminho sem saída e que nos leva ao desastre: refugiados, mortes, guerras, rupturas de relações consolidadas (caso da Tanzânia), transformação do país em zona de conflito internacional, perigo de fragmentação do país (…) ou então conceber a política como a arte do possível (Júlio Andreotti) e ousar, galhardamente, buscar alternativas.

    Há 10 anos atrás  o Equador ofereceu-se para renunciar à exploração de um grande depósito de petróleo na floresta tropical amazónica em troca de 3,6 mil milhões de dólares. Com o dinheiro o país planejou promover energias renováveis e reflorestar as áreas dizimadas. Moçambique poderia exigir mais e usar a recompensa pela renúncia a explorar energias fósseis  para promover e diversificar a economia, criar empregos, elevar a qualidade da educação e da saúde, reflorestar áreas desmatadas nos últimos tempos, construir diques nas zonas vulneráveis às mudanças climáticas.

    Abrandar, parar e até mudar de direcção, não é necessariamente sinal de fraqueza, mas  estratégia da clarividência e da sabedoria.

     Algumas utopias (aparentemente insensatas) podem ser verdades de amanhã (Victor Hugo).

Severino Ngoenha, Thomas Kesselring, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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