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Epaminondas de Jataí: outro pré-socrático

Meu avô era um pré-socrático. É que, pensam erroneamente que os pré-socráticos eram somente aqueles pensadores gregos, anteriores a Sócrates, que interrogavam sobre o cosmos e sua ordem, sua medida, princípios e o vigor da natureza. Por conta de seus temas de investigação, mesmo depois de Sócrates existiram pensadores da Grécia Antiga que foram classificados como pré-socráticos, até mesmo porque, de seus textos restaram apenas fragmentos, que desafiam a interpretação e a imaginação dos comentadores.

Não, meu avô não sabia ler e escrever. E a falta dessa educação formal mínima lhe cobrou um preço bem alto, principalmente quando mais novo se meteu em gambiras e gambiarras das quais nem tenho notícias, a não ser pelo resultado. Diante do desafio de um negócio que não entendia, não recuava, dobrava a aposta, era dobrado e perdia. Mas esse jovem (ou não tão jovem) arrogante não era o meu avô. Ele nasceu mais tarde nessa mesma existência, como muda e adensamento da idade, com acúmulo de erros e fracassos que o destilaram como pessoa.

De seus ensinamentos deste então, poucos partilharam e são difíceis de transmitir, porque se misturavam com o que ele sonhava ser, com o tempo que havia perdido, com o que o tempo o havia ensinado. Muito desse ensinar era de um estar junto e saber esperar. A maior parte talvez seja mera intuição e caridade interpretativa. Como aquela que embala os leitores dos fragmentos dos pré-socráticos na busca de lhe adivinhar o segredo ou de criar uma interpretação, para além do “mito” gerado por suas tentativas de afastar o pensamento mítico: uma reinvenção do ideal que faz do nada, tudo.

Contando já com essa simpatia, trago aqui dois fragmentos de Epaminondas de Jataí. O primeiro é provavelmente resultado de prolongadas observações pela janela de sua casa na cidade, vendo os carros indo e vindo numa rua cada vez mais movimentada. Certa feita, desviando o olhar da janela me disse como quem anuncia uma verdade triste, mas incontestável: “a gasolina é a coisa mais barata do mundo”.

Logicamente, eu contestei, mas ele reafirmou o juízo: “se não, não teria tanto carro indo e vindo, noite e dia”. É preciso pensar como ele estava certo: era o mais barato, já que o preço não importava, os carros só aumentavam e a frase sobrevive para ser pensada.

Outro argumento vai ajudar neste pe(n)sar de valores. Comprei no mercado uma dúzia de ovos e cheguei na casa de meus avós reclamando do preço que havia aumentado muito de uma semana para a outra. Meu avô não me deu trela e contestou: não estava caro, não. Insisti, explicando a porcentagem do aumento, mas ele não se abalou e me fez perguntar o porquê insistia que não estava caro. Respondeu: “E você sabe do custo da galinha para botar um ovo?”. O argumento gerou risadas e o contraponto da minha avó: “uai negô, tu já botou ovo?”.

Tenho que pedir mais caridade interpretativa do que aquela que minha avó demonstrou em relação a este outro fragmento de Epaminondas. E deixar como interrogação o que para ele era valor, vida e sentido dessas engrenagens de progressivos esquecimentos e desconhecimentos. Para quem cresce em ambientes urbanos, os ovos, o leite etc. surgem como mais um produto feito em fábricas e o rito é aquele difundido pelo consumo.

Os pré-socráticos geralmente têm nomes pouco comuns, como Anaximandro. Anaxágoras, Anaxímenes, Xenófanes ou Empédocles. O nome de meu avô poderia facilmente ser cangado nesta lista: Epaminondas. Ora, cada pré-socrático é lembrado pelo nome de sua cidade natal: Tales de Mileto, Heráclito de Éfeso, Parmênides de Eleia etc. Deste modo, meu avô é Epaminondas de Jataí. Presente!

Marcos Carvalho Lopes

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