Em 2009 fiz uma breve entrevista por e-mail com o filósofo e poeta Antônio Cícero. O mote da conversa foi o texto póstumo de Rorty “O fogo da vida”, que trata da relação que o filósofo norte-americano tinha com a poesia. Cícero gostou do texto e da tradução da professora Susana de Castro, mas modificou um pouco a tradução dos poemas. Curiosamente, aqui ele fala um pouco sobre o texto que enunciou no filme Cinema Falado de Caetano Veloso que problematiza a ideia de “filosofia pop”.
O filósofo Antonio Cicero e o poeta Wally Salomão trouxeram Richard Rorty ao Brasil em 1994 para o ciclo de conferências “O relativismo enquanto visão de mundo”, que depois deu origem a um livro de mesmo nome. (CICERO, A. e SALOMÃO, W. (Org.). O relativismo enquanto visão do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994). Essa foi a primeira visita de Rorty ao país. Cícero afirma que ele era simpaticíssimo e diz que foram prazerosas as vezes que conversou com o filósofo norte-americano.
Cicero é também o primeiro filósofo que procurei entrevistar nesse projeto. Faço então uma breve apresentação de como esse autor (que além de filósofo é poeta, letrista, ensaísta e inclusive atuou no filme de Caetano Veloso Cinema Falado) me “apareceu”, como contextualização para a entrevista (e também para instigar o leitor a procurar ler mais sobre/de Cícero).
Antonio Cicero é um dos autores que vêm à cabeça quando alguém diz que não existe filosofia brasileira. Mas não costumo entrar nessas discussões, porque são infrutíferas e cansativas: o termo “filosofia” é flexível o suficiente para atender a diversas interpretações. O que falta no Brasil é uma cultura do diálogo, de ler e citar seus pares, de fazer do debate uma prática viva. Como afirma Paulo Margutti, nossa cordialidade acaba deslocando esse enfrentamento para esse mantra da “ausência de filosofia” e o ressentido costume de ignorar como idiossincráticas as tentativas de quebrar essa barreira.
Não precisamos nem devemos tomar debates teóricos como conflitos pessoais: é possível admirar uma pessoa e manter com ela amizade, ainda que dela discordemos em questões filosóficas. O dogmatismo e o autoritarismo são pressupostos que descartam o convívio com diferenças e, com isso, a própria possibilidade criativa. Antonio Cícero, assim como Arthur C. Danto, lembram de sua admiração por Richard Rorty como pessoa, ao mesmo tempo que dele divergem em termos filosóficos.
Cícero surgiu para mim como filósofo numa apresentação hiperbólica que dele faz Caetano Veloso em seu livro Verdade Tropical, onde qualifica a obra do pensador carioca O mundo desde o fim como “um dos maiores acontecimentos intelectuais do final do milênio no Brasil” (p. 448). Caetano queria destacar a contribuição de Cícero e provocar seu leitor para que procurasse verificar por si mesmo a verdade de sua avaliação. Para o ex-estudante de filosofia baiano, Cícero é uma inspiração para imaginar o Brasil em sentido utópico.
Caetano Veloso fornece uma resenha rápida de O mundo desde o fim: “Trata-se de uma petulante retomada do cogito cartesiano em termos radicais, o que vale por um escândalo no ambiente acadêmico brasileiro, dividido entre comentadores do marxismo frankfurtiano e comentadores do pós-estruturalismo francês. Se eu lera, em 68, em Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, tratava da inteligência os problemas essenciais que tal posição implica. O livro é uma afirmação radical da modernidade nascida com Descartes – contra todas as investidas antiiluministas que inspiraram grande parte do pensamento contemporâneo – e põe o Brasil na responsabilidade extrema de ser, não o grande exotismo ilegível que se opõe à razão europeia, mas o espaço aberto para a transição para (parafraseando Fernando Pessoa sobre Mário de Sá Carneiro) um Ocidente ao ocidente de Ocidente. O que não é, de modo nenhum, a mesma coisa que inibir o Brasil, como querem fazer muitos acadêmicos que se creem antifolclorizantes, reduzindo-o a um bom comportamento dentro de parâmetros ‘ocidentais’ cristalizados. Com isso, Cícero destrói a falsa opção para o Brasil entre a bizarria estridente e imitação modesta.” (p. 448-449).
Caetano Veloso vai se apoiar em Cícero, dentre outros autores, para pensar o lugar da canção popular brasileira, como um exemplo da “pletora de alegria” que marcaria o ser profundo do país, algo que Hélio Oiticica chamava de uma “vontade construtiva geral”.
Continuo em dívida com a provocação de Caetano, já que ainda não li o ensaio O mundo desde o fim, mas agora mesmo o tenho nas mãos, aguardando um momento menos tumultuado pelas obrigações acadêmicas. Porém, a dívida não é total, já que procurei ler textos de Cícero. Dentre eles, considero oportuno lembrar os ensaios “Brasil feito brasa” e “O trânsito no Brasil”.
O primeiro pensa a questão do multiculturalismo de um ponto de vista que seria endossado por Rorty, tomando o impulso de sincretismo cultural como nossa possibilidade genuína de construir uma civilização original, ressaltando que “o Brasil não se realiza – e menos ainda se apresenta como exemplar – senão enquanto radicaliza a afirmação americana da oportunidade universal e da liberdade individual, isto é, da democracia”.
Por outro lado, o ensaio “O trânsito no Brasil” ressalta a dificuldade de construir um senso de comunidade em nosso país, quando nem as leis de trânsito são respeitadas. A forma irresponsável de agir do brasileiro no trânsito seria um sintoma de sua incapacidade de agir com autonomia e, assim, comportar-se eticamente. Para Cícero, se conseguíssemos ao menos instaurar efetivamente o respeito às leis de trânsito, ainda que de modo isolado, teríamos com isso alcançado “um progresso mais real e de maior consequência do que qualquer desenvolvimento que pudesse ser representado pelas variações dos índices econômicos”.
1) Que impacto a obra de Richard Rorty teve em sua reflexão filosófica? Como o Sr. vê a presença de seu trabalho na filosofia brasileira?
Eu quis trazer o Rorty ao Brasil porque era um dos filósofos vivos mais interessantes e influentes na época, mas escrevo filosofia por outros caminhos. Não ou pragmatista, como, aliás, você pode verificar no meu blog, na discussão sobre o relativismo (http://antoniocicero.blogspot.com/2007/12/o-relativismo-e-modernidade.html). Mas eu admirava o Rorty e gostava muito dele pessoalmente.
2) Como o Sr. vê a relação da filosofia com o restante da cultura?
Não vejo a filosofia como expressão cultural, mas como manifestação da razão, que, a meu ver, não pertence a cultura nenhuma. Ao contrário: a meu ver, a filosofia funciona como crítica à cultura.
3) O tipo de proposta desenvolvida pelo Pólo de Pensamento contemporâneo (POP – www.polodepensamento.com.br ) parece-me que se distância e se diferencia do tipo de trabalho desenvolvido nas academias. Existe aí mesmo uma diferença? Por que?
Ajudei a conceber o POP, mas não tenho ligação institucional como ele. Ele é, de fato, diferente das academias e não pretende competir com elas, pois oferece apenas cursos extra-curriculares, pontuais e de curta duração para pessoas menos interessadas em carreira ou profissão do que em cultivar o seu otium cum dignitate, como dizia o velho Cicero.
4) No filme O cinema falado o Sr. enuncia uma reflexão sobre e contra a ideia de uma filosofia pop. O que o Sr. pensa sobre esse fenômeno de misturar filosofia com fenômenos culturais de massa?
Não tenho nada contra mistura nenhuma. É possível uma leitura pop da filosofia, mas o que não se pode é reduzir toda filosofia a um fenômeno pop. Não concordo com Deleuze, quando ele diz que “uma boa maneira de ler, hoje em dia, seria tratar um livro da mesma maneira que se escuta um disco, que se vê um filme ou um programa de televisão, da mesma maneira que se acolhe uma canção”. É claro que é possível ler dessa maneira, mas não é uma maneira boa, e sim ruim, empobrecida, de ler filosofia ou poesia. Do mesmo modo, você pode ouvir um quarteto de Beethoven como música de fundo, mas é uma maneira ruim, empobrecida, e não boa, de ouvir tal música.
5) Em seu (provável) último texto, O fogo da vida, Rorty comenta sua relação com o câncer e a redenção que dentro dos horizontes da finitude encontrava na poesia e lamenta não ter se dedicado mais a apreciar a poesia (o que teria tornado sua vida mais rica). Como o Sr. como poeta vê a relação entre filosofia e poesia? Ela teria algum poder de “redenção” (de epifania da contingência) capaz de promover uma cultura secular ocupando o lugar hoje dado para a religião?
O texto de Rorty é muito bonito. Mas não acho que a poesia substitua a religião, pois esta empobrece a vida, e deve ser simplesmente abandonada, e não substituída; já aquela, como diz Rorty, torna a vida mais rica.