0

FILOSO (MOÇA)FEMAS – A Luta Continua…

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

No princípio era o verbo – moçambicanas, moçambicanos (…) em vosso nome a Frelimo proclama a independência total e completa de Moçambique.  Porém,  desde que, com o verbo (criador) Deus criou o mundo ideal (em que Moçambique proclamou a independência), com o seu Fiat, o xiconhoca do Satanás desafiou-o (sabotagens, terrorismos) adulterando a sua criação e fazendo o mundo (e Moçambique)  como o conhecemos; cheio de poderes de negação, depois de contradição (guerras, guebuzismos). Do anjo decaído veio a realidade transfigurada; a rebeldia foi o seu instrumento: Satanás ganhou discípulos, em número impressionante, impelidos mais pelo espírito diabólico de fazer contra (contradição) do que pela libertação e arbítrio (que nunca souberam assumir responsavelmente).

Os primeiros foram as criaturas iniciais, os camaradas da primeira hora, Adão e Eva. Apesar de prometidos a uma edénica   felicidade eterna, diante do único semáforo amarelo – de  prudência – responderam peremptoriamente com um petulante e imprudente ‘non serviam’. Quando o diabo se aproximou dissimulado na pele de uma serpente, foi a uma camarada Eva já  afectada a quem a besta ofereceu a maçã, assim como ao seu OJM Adão, companheiro também igualmente sedento de concupiscência. Descoberta a nudez pós-fruta (desobediência), tratava-se então de se vestir – e alimentar e fazer leis.  A história estava doravante adulterada e, em oposição a frater, agapeia, camaradagem e paz do Éden, começava a era solipsista do Eu Narcisístico e dolarcrático, com o seu relativismo moral e guerras “justas”, de gemas e de claras, próprias do desenrascar humano.

Se por aventura tivessem obedecido e não se tivessem deixado tentar!… Mas como o diabo  com a sua divisa (slogan) non serviam só está ao serviço de si próprio, assim também o seu descendente humano baseia a sua causa somente na propriedade, que parece não ter limites. Este imperativo categórico de rebeldia serviu a diferentes categorias de descrentes: os libertinos negadores de Deus, dos deuses e dos dogmas humanos, os libertários adeptos de liberdades sem obrigações, os   revolucionários e utopistas sedentos de um mundo sem contradições, sem sofrimentos, sem dor, sem movimento (fixado na excelência da alegria eterna), os niilistas destruidores do poder dos pais e da autoridade, da tradição e da razão, os ateus deicidas e entusiastas anunciadores da morte de toda a transcendência, os anarquistas…e tutti quanti que se pretendem mais lúcidos e conhecedores que todos os outros. Os homens deuses (Harari) que na esteira de Giordano Bruno se decretam demiurgos de um monogenismo biotecnológico, classificam o bem e o mal, decretam quem (raças, culturas, nações ) tem direito à vida e quem merece a morte. Os que se reclamam do povo (o povo é meu patrão) aplicam-se a conjurar e  agir contra ele. De facto, nenhum deles serviu outra coisa senão o próprio ego. Diante do terror que semeiam pelo mundo fora – Cabo Delgado, Palestina, Ucrânia (…), com bombas (todas saídas das mesmas fábricas nos EUA, na Rússia, na União Europeia, na China) – das corrupções, das dívidas ocultas, do tráfico político…, damo-nos conta quanto as democracias oligarcas e as oligarquias democráticas, da esquerda e da direita, são gémeas.

A revolução francesa não matou só o rei (e a moçambicana não só Mondlane e depois Machel) mas fez tábua rasa de toda a transcendência. A rebeldia pode doravante propor uma figura alternativa que releva do Deus negado e do rei decapitado. A morte de Deus, segundo a autópsia de Ludwig Feuerbach na “Essência do Cristianismo”, torna possível a proliferação de diferentes figuras: o único, o revolucionário, o niilista, o super-homem, o xiconhoca, o changuinista e outras variações trágicas sobre o tema do solipsismo rebelde

A fórmula mais radical e actual encontra-se no “O Único…” de Max Stirner, onde o autor postulando o contrário da moral kantiana do dever, faz coincidir o seu direito com a força, nega o outro e anuncia o sucesso como o único princípio director. Maquiavel da ética pura, Stirner propõe um revolta radical que nada nem ninguém pode conter. Ao lado do Marquês de Sade,  o livro do filósofo alemão oferece as ideias da razão egoísta. As páginas de Stirner constituem uma contra-crítica da razão prática e mais particularmente uma máquina de guerra lançada contra os avatares do kantismo no século XIX: o hegelianismo. Lá onde o autor dos “Princípios da Filosofia do Direito” convida o indivíduo a realizar-se na, pela e para a colectividade, Stirner (como certos frelimistas de hoje) opõe não os direitos do indivíduo ou do homem mas o seu poder que não quer conhecer nenhum limite.

A metafísica que sustenta uma tal mística é evidentemente solipsista. Como no Marquês de Sade, o outro (o povo, os moçambicanos) não existe, ele aparece como nihil (nada). O mundo stirniano supõe um único ser, o seu, o resto do mundo deve suportar  a objectivação que lhe é imposta. Leitor da “Fenomenologia do Espírito”, Stirner conhece a luta das opostas “auto consciências de si” (selbst  bewusst sein), não ignora que o desfecho do combate é o estabelecimento de um mestre e um escravo. Ele não quer ser servo e dá-se todos os meios para estar na maestria do mundo, ao lado dos boustanis da raça dos senhores; de maneira que ele se autoriza tudo, absolutamente tudo (as dívidas ocultas são um epifonomeno), o que  lhe permite  a existência na Guinness dos africanos mais ricos da revista Forbes.

Dando primazia à força sobre o direito ou escrevendo ‘eu quero, por isso mesmo é justo’, ‘o que está em meu poder é meu’ ou ‘o que tens a força de ser, tens o direito de sê-lo’ Stirner encabeça uma filiação a que esclavagistas, colonialistas, opressores, ditadores, impostores, xiconhocas, pecuniocratas, guebuzistas, nhangumelos (…) se podem recomendar. Hitler e Mussolini mas também multinacionais, teocracias, democracias autoritárias e de predação, ditadores, oligarcas, terceirors mandatistas, (…) fizeram e continuam a fazer de “O Unico Indivíduo e a sua propriedade um breviário teórico e prático.

Se fizéssemos nossos os princípios formulados por Trotsky em “A moral deles e a nossa” confirmaríamos a distinção weberiana entre ética da convicção e ética da responsabilidade que desacreditam os defensores de lógicas de poder totalitário (o nosso roubo é diferente do roubo deles, a nossa opressão é libertária). Mas se não podemos julgar os actos de uns à luz dos princípios de outros, temos então que concluir, depois da morte de Deus, da impossibilidade de toda e qualquer moral?  Estamos na encruzilhada entre o amoralismo dos que – como Sade, Stirner e alguns infiltrados no Estado e na frelimo de hoje– subordinam as suas acções simplesmente ao sucesso do empreendimento – o fim justifica os meios – e à imoralidade  dos nietzschianos – para além do bem e do mal – (o pouco que nos resta de reserva moral) que consideram que uma via de acesso turva  não pode justificar um fim elegante recorrendo a quaisquer meios.

Depois de demiurgos, profetas e sacerdotes, hoje o verbum passou a ser apanágio de poetas, escritores, filósofos. Nas “Areias do Imperador”, (símbolo da transmutação de um imperador absolutista ao absolutismo dos mais fortes que ele)  Mia Couto põe na boca de uma das suas personagens a lapidar sentença: os escritores inventam palavras (Deleuze diria ‘conceitos’) mas os soberanos com as palavras criam realidades (de res, coisas). No alvor da nossa redenção, durante os Acordos de Lusaka,  o nosso potencial soberano pronunciou o desverbo (diverbo) ‘desconseguir’; o fiat desse pre-anúncio de mau auguro é a lista dos nossos desconseguimentos. Desconseguimos o socialismo,  a educação (…) estamos a a desconseguir a paz, a democracia, o desenvolvimento, a unidade, a independência…

Alguns revolucionários de ontem (bastantes!), obtido o poder tão ambicionado, são os reacionários de hoje. Perderam a  lucidez  de que a revolução não era um fim em si mesmo mas  um acto finalizado com um objectivo, a felicidade dos nossos povos (Amílcar Cabral); não entenderam que a revolução não era para estar no topo e ter preferência sobre todo e qualquer indivíduo comum; antes, importava acreditar em ideias, defender ideais, sacrificar um certo número de valores, sem esquecer que eles existem encarnados noutras pessoas, existências que poderíamos ter poupado, que poderíamos, nas circunstâncias assustadoras para onde a história nos atirou, dialogar e eventualmente corrigir de maneira diferente sem as destruir. Mas sobretudo a falta de vigilância sobre eles (e nós próprios) levou-os (e a nós) a cair no  pecado adâmico da concupiscência que se insinuou, desde Eva, e leva alguns de nós a procurarem, em nome da liberdade de todos, a encher os seus bolsos com ‘coisas sujas e inconfessáveis’ (Jorge Rebelo); a falta de consciência de que a sobrevivência pelo trabalho (sofrer, penar) dos  descendentes de Eva, num mundo do desenrasca, humano, não se compadece com o repouso. É o antigo combate entre Maquiavel e La Boétie, Sartre e Camus, ordem de Deus e desobediência de Satanás, lei da cidade e lei do coração, liberdade e escravidão

Porém ‘nós viemos de longe’ (Noémia de Sousa em Sangue Negro), da grande tribulação: escravatura do colonialismo, do chibalo. Uma canção icónica da nossa discografia revolucionária salmodiava a coragem dos africanos pela sua independência total (o que era sem contar com a Total).  Nas nossas circunstâncias foi preciso  muita coragem para nos libertarmos das algemas e seria injusto não saudar nos protagonistas dessa epopeia sem precedentes, os heróis da nossa causa e nação.

Mas é também preciso lembrar que o caminho que temos pela frente é maior do que o caminho que fizemos. Por isso não há tempo nem para o descanso, nem para nos vangloriarmos pelo que foi feito. Também é preciso não transformar batalhas perdidas em fim da guerra; o testemunho tem que ser passado às gerações futuras para que, não obstante o “mar alto” (J. Nyerere), a causa de todos possa continuar. Mais do que desconseguir, as palavras mais pronunciadas no nosso verbatim revolucionário foram, sem dúvida, a luta continua.

A luta continuou, porém desde o início da dolarcracia ela consiste na busca do Único e da Sua Propriedade (poder, dinheiro, influência, acumulação…) até a preço da instrumentalização das nossas diferenças raciais, étnicas, religiosas e regionais.  A serpente leva a lutar uns contra os outros: partido (sem ideias nem valores), governo, ONGs na busca do Único e da sua Propriedade. A necessária luta pela liberdade e igualdade de todos parece não ter hoje muitos adeptos! …

O principal problema de hoje é com quem contar para continuar a Luta. Quem está disposto a sair da cobardia, abandonar a comodidade, a prosseguir a luta secular pela liberdade de todos; Quem? Na verdade, com quem verdadeiramente se pode contar?

Pelos 30 milhões de Moçambicanos A Luta Tem Que Continuar!…




Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *