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FILOSO (MOÇA)FEMAS – Black (brancas, amarelas, cinzentas,  vermelhas) Lives Matter

por Severino Ngoenha, Carlos Carvalho e Toni Andre Scharlau Vieira

No livro Animal Farm publicado em 1945 – antes do anti/post trumpiano 1984 – o escritor George Orwel, denunciando a falsa igualdade do regime soviético, cunhou  o famoso aforismo: todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais  que outros.

Afinal também algumas guerras (em Cabo Delgado, na Palestina…) são menos guerras do que outras;  certos sofrimentos (Líbia, Iraque, Palestina) menos sofrimento do que outros, algumas mortes (Kosovo, Síria, Afeganistão) menos morte do que outras, algumas humanidades (Chile de Pinochet, Venezuela de Chavez e de Maduro, Cuba de Fidel) menos humanidade do que outras. A elogiada atitude de abertura de fronteiras e acolhimento a ucranianos (brancos, loiros e com olhos azuis) por parte das xenófobas Polónia e Hungria, é concomitante com o fecho, naqueles mesmos países,  das fronteiras a negros e muçulmanos, também em fuga de balas e bombardeamentos.

Depois de Karl Kraus ter invertido a famosa afirmação de Von Clausewitz: “a guerra como continuação da política por outros meios” para “a política como continuação da guerra por outros meios”; depois da  constatação da impossibilidade de um conflito entres as grandes potências para “salvar a humanidade da bomba atómica ” (Raymond Aron) ter favorecido conflitos regionais e pequenas guerras (quentes, como a dos 16 anos em Moçambique), agora são as sanções económicas (experimentadas na África e em países do terceiro mundo), a continuarem a guerra ou a política por outros meios. 

A forma como os media reportam os factos preparam meticulosamente a vingança. Já que contra a atómica Russia não se podem fazer bombardeamentos com drones (caros a Obama) ou invasões bush-sarkozianas (como no Iraque, no Kosovo e na Líbia),  recorre-se a nova arma atómica (e altamente eficaz – na maior parte dos casos): as sanções económicas que, em nome de inocentes ucranianos agredidos, vai matar outros inocentes, culpados de serem russos.  Assim a morte de inocentes continua, inexoravelmente, a sua epopeia de “vida”.  O barulho mediático da Russia – OTAN (com o pretexto da Ucrania) orquestrado – hollywoodianamente – pelos meios de comunicação, escondem dramas humanos mais graves para boa parte da humanidade, porque os Palestinos não têm nada a aprender sobre balas, nem os Iraquianos, Afgans, ou Sírios sobre  bombardeamentos e destruições ou os africanos no mediterrâneo sobre o drama de se ser refugiado (…), nem mesmo os mocimboenses   sobre ter que  abandonar a sua própria terra.

Nas guerras actuais, desde a bushiana (e bullshitiana) contra as armas de destruição massiva no Iraque (nunca encontradas), a razão e as razões não têm espaço. Os meios de comunicação, com as suas simplificações e o culto do ‘tempo real’, não se limitam a fazer um inventário dos horrores, põem-nos também a vivê-los em direto, numa espécie de pedagogia de retaliação – pedagogia da vingança, didaticamente preparada para não suscitar emoções diante da morte de muitos inocentes que a lei de talião vai provocar. 

Porém, a primeira vítima destas pedagogias de guerra é a verdade. Como buscar a verdade quando se dá primazia à emoção sobre a razão? Como buscar a verdade quando a emoção-guia é motivada e teleguiada pela manipulação dos eventos e não pelo pensamento? Como dizia J.P. Sartre, “quando todos os caminhos estão barrados, a consciência se precipita no mundo mágico da emoção, ela precipita-se toda inteira degradando-se (…)”. “A consciência que se emociona parece-se muito com a consciência que se atormenta” (SARTRE, 1939). Como falar ou buscar então a verdade?

Esta pedagogia favorece a supressão da distância entre o sujeito e o objecto e impede o recuo necessário ao pensamento. Ela priva-nos do tempo de reflexão e de debate, ela impõe-se de tal maneira que toda a consciência se torna emoção. Ela é a principal inimiga da razão. Ela não tenta compreender, sente. Degrada-se assim o sentido crítico e a procura da verdade. O que prevalece neste tipo de antagonismo é a razão da força e não a força da razão. O que C. H. Kane chamou de “arte de ganhar sem ter razão”. Existe algo mais antifilosófico do que isto? 

A guerra é a forma extrema da violência, não só porque atenta diretamente contra a vida humana, mas também pela sua capacidade de provocar a destruição das infra-estruturas, o aumento da pobreza, da fome e da subida da corrupção. Ela é extrema porque banalizando o mal e esvaziando progressivamente o sentido e o valor da vida através do incremento da força bruta nas suas diversas formas: assassinatos, desarmonia doméstica, justiça sumária, indiferença face à dor e ao sofrimento do outro, e como se isso não bastasse, ela suscita sentimentos agudos de vingança que, materializados, aumentam o ciclo infernal. Em breve, o tinir das armas aumenta a fúria no próprio homem e banaliza o mal (Hannah Arendt). 

Para além da plêiade de pretextos e explicações científicas e pseudo-científicas, as guerras estão de tal mal imbricadas com as sociedades, todas, com as histórias, todas, que estas acabam consubstanciando-se nelas.  Alguns historiadores defendem que não são as nações que fazem as guerras, mas as guerras é que fazem as nações. De Gaulle acreditava que a França se fez a golpe de espada. Até os ritos fundadores são histórias (mitos) de violência e de guerra. Isto não é válido só para os estados tradicionais mas é também verdadeiro para os estados modernos: Rómulo que mata Remo; a teoria da pacificação americana contra os índios; Joana d’Arc em França ou ainda o Guilherme Tell na Suíça. Do ponto de vista material, as infra-estruturas do desenvolvimento das sociedades, desde estradas e pontes romanas à internet e aos drones quase tudo é de origem militar. A indústria bélica ocupa, hoje, nas economias dos países mais avançados um lugar preponderante. Do ponto de vista axiológico, educam-se os jovens, desde a paidéia até aos marines no sentido da honra e esta é ligada, homerianamente, à razão da força,  à retaliação, à vingança. Do ponto de vista social, o belicismo humano inunda os livros de história, as praças públicas, as imagens cinematográficas. 

É à guerra que se pede sentido. A relação do homem com a vida, com a morte, com a religião e tudo o que ela comporta de comunidade, de mitos, de representações, com os tabus, as fascinações e proibições, pertencem à guerra. Aliás, as religiões tradicionais ajoelharam-se diante desta meta-religião, desde os Capelães militares até aos pregadores fanáticos nas mesquitas, nas sinagogas, nos templos e nas igrejas. Os únicos momentos de unidade, nas diferentes nações, dão-se quando se está em guerra contra um inimigo, real ou suposto. Esta tese, já defendida por Maquiavel, foi retomada pelas chamadas grandes nações ao longo de todo o século XIX. Isto quer dizer que é à guerra que pedimos uma comunidade. No  filme de Licínio de Azevedo, “Comboio de Sal e Açúcar”, as relações entre os passageiros são distantes ou de conflito, excepto quando os militares fazem uso das armas e do “chamboco” para pilhar e abusar das mulheres. Os únicos momentos em que os viajantes se sentem unidos e fazem comunidade, são aqueles em se sentem alvos de ataques. 

Por isso, a guerra não precisa de ideologias ou de religiões, ela é-lhes superior e manipula ambas. Quando desaparecem umas, ela inventa outras: capitalismo contra comunismo, democracias contra o capitalismo, ricos contra pobres, Norte contra o Sul, muçulmanos contra cristãos, católicos contra protestantes, sunitas contra chiitas, sociedade aberta contra os seus inimigos, o bem contra o mal e agora a Rússia agressora contra a Ucrânia vitima. A única coisa sem a qual a guerra não pode viver, os ingredientes essenciais para a sua existência, são os contrários, os opostos, os antitéticos, em suma, os inimigos que se opõem e mutuamente se defendem. As máscaras mudam, mas a única constante é a guerra. A guerra sempre, criando constantemente novas necessidades, novos inimigos, novos conflitos, novas ideologias, novas oposições, novos contrários. Neste teatro dantesco quem perde sempre, em todos os lugares e em todo o tempo, é o homem.

A perestroika e a glasnost, concomitantes ou condição sine qua non para o fim da guerra fria e daí para a emergência do pensamento único e ultra liberal, trouxe a esperança de que o fim dos atritos ideológicos traria o fim das guerras, que a globalização económica realizaria, enfim, o ideal kantiano da paz perpétua. Porém esta globalização era prisioneira, nos seus alicerces, do demónio dos complexos militar-industriais  que transforma balas e canhões em lucro – denunciado pelo presidente Dwigth D. Eisenhower no seu último discurso presidencial aos americanos – e coloca o fabrico das armas (guerras, destruições e mortes) em lugar cimeiro no comércio mundial. Esta contradição intrínseca e o exaspero da competição levaram a mudar os meios mas a perpetuar os conflitos;  depois das guerras convencionais, hoje com a robotização e o cyber, fala-se de cyber-sabotagens, de cyber-espionagens, de cyber-ataques. As guerras já não se fazem simplesmente por exércitos que se põem frente a frente. O objecto já não é prioritariamente a conquista de novos territórios, mas o acesso a espaços terrestres e não-terrestres, em princípio pertencentes a todos: o mar alto (as águas internacionais), o ar (espaço aéreo internacional), o espaço extra-atmosférico e os ciberespaços. Todos se tornaram necessários para a projeção das forças militares: já não há expedições sem satélites de comunicação. Estes condicionam também a viabilidade e a prosperidade económica já que o essencial das trocas mercantes se faz por seu intermédio. Isto parece confirmar a tese de Clausewitz: a guerra é um camaleão cujas cores variam em função das circunstâncias históricas. Mudam os meios, os protagonistas, os pretextos, mas o que permanece constante é a guerra “mesmo quando ela já não ousa dizer o seu nome” (Pierre Hassner). 

Quando os tambores da ameaça atómica, das guerras do Vietnam e Argélia, do macartismo nos EUA, dos regimes autoritários na Europa (de Franco, Salazar, De Gaule) soaram, as barricadas da contracultura foram levantadas pela pop music, pela Beat Generation (Kerouac, Ginsberg, Corso, Ferllinghetti), e por Timothy Leary e amigos que lançaram  a mensagem de amor e de paz contra a guerra. Mas a verdadeira resistência política – com Sartre, Marcuse, Adorno, W. Benjamin – foi filosófica porque a filosofia é, por antonomásia e desde a sua origem, anti-guerra. 

O essencial do combate da filosofia, desde  Platão, é contra a paideia com  a sua educação espartana e o espírito de vingança; é uma educação ligada ao exemplo dos heróis que comporta em si as ideias da lei de talião e da guerra. A filosofia postula  uma educação centrada sobre a verdade, o que comporta uma diferente atitude do homem em relação ao outro, mas sobretudo encerra a noção de justiça, o que não pode, de nenhuma maneira, confundir-se com vingança. Aliás, a referência constante que Platão faz de Sócrates tem que ver com o seu distanciamento do ethos que até então tinha governado Atenas. 

O método de Sócrates não se limita à introspeção, uma vez que o conhecimento necessita de mediador, de um ‘tu’. A verdade e a sabedoria não pertencem a ninguém, só se podem descobrir numa busca comum. A verdade apresenta-se assim como caminho que temos que fazer juntos. A filosofia não é uma actividade que se faz no isolamento da leitura ou da meditação, mas uma busca que se faz em comum. 

Os filósofos, para proporem um diálogo, conversam com as sociedades nas quais vivem, mas também entre eles, para estarem à altura de sugerir soluções aos problemas de todos. Quando são habitados por um qualquer etnocentrismo – ou elitismo – só podem sugerir soluções de um universalismo etnocêntrico e até justificar violências e guerras. Assim, a verdade e não os subterfúgios sofistas e as estratégias militares, constitui o fundamento da Basileia que Platão pretende construir. Alicerçar a polis sobre a verdade significa pôr, no cimo do panteão axiológico, o valor justiça (para todos)  que só se pode atingir num processo de diálogo. Aliás, é nisto que consiste a pedagogia de Sócrates e o espírito filosófico dela decorrente. Então os belicistas, os defensores primários da guerra justa (mesmo que se lhe chame sanções económicas), os que recusam o diálogo e o esgrimir de ideias, os que possuem a “verdade”, os que têm absolutamente razão, confrontam-se com o espírito filosófico e seus métodos.

Sentir-se chocado diante de certos eventos, como bombardeamentos a cidades,  é normal e humano. Aliás é bom que assim seja. Contudo, transformar a própria indignação em apologia de uma razão vingativa é renunciar ao pensamento e à filosofia. A guerra é por natureza antifilosofia e a filosofia, por natureza, anti-guerra. Por isso, o espírito filosófico supõe que se saia de toda e qualquer introspecção, de todo e qualquer espírito ilhéu, de parâmetros de causas etnocêntricas para poder navegar-se em direcção aos confins da humanidade e colocar-se nos espaços externos que intervêm para além das fronteiras; viajar em torno de todo o continente humano, acima das crenças, das civilizações, dos costumes.

Contudo, cada dia que passa, cada atentado que é cometido, cada bomba que é largada tornam mais difícil falar da justiça, da paz, do diálogo e de reconciliação. Porém, do ponto de vista teórico, o filósofo deve ousar, ao preço mesmo de incomodar os demais, pensar por si mesmo e não se deixar levar pelas modas, correntes da época e pelos lugares comuns. Do ponto de vista prático, ele deve revoltar-se contra a desordem do mundo, contra as opressões, as desigualdades, as injustiças, a violência, a guerra mas também contra a paz dos cemitérios; ele deve militar para a construção de uma basileia fundada sobre a justiça, a única costureira que pode tecer os tecidos sociais globais e pôr termo à violência.

Black lives (bem como as brancas, amarelas, cinzentas,  vermelhas/ russas e ucranianas ) matter, para além de todo o dinheiro ou estratégias de poder. É isto que a filosofia (o pensamento mais pensante) deve recordar, sempre, aos putinis e aos bidenes do mundo; mas também aos filósofos (https://philosophersforukraine.com.ua/; [email protected].) que se mobilizam de maneira ecuménica contra a guerra só na Europa, e não fazem o mesmo para a Líbia, Síria, Iraque, Palestina e muito menos para Mocímboa da Praia.

All lives matter



Severino Ngoenha, Carlos Carvalho e Toni Andre Scharlau Vieira

Marcos Carvalho Lopes

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