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A Logica Do Ser-Em-Comum

ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti e Augusto Hunguana

O espectro de desolação que paira (Marx) sobre Moçambique não cessa de se agravar a cada dia que passa. As greves (activas e sobretudo passivas) em todos os sectores públicos, o crescente descontentamento popular, a grave crise do sector da educação, da saúde, o aumento da pobreza e da corrupção (que devem ser conjugados juntos), o nível  da dependência e de ingerência (que também tem que ser conjugados juntos), a persistência da guerra, o crescente divorcio entre os jovens e a política e/ou a governação, ressoam como evidencias alarmantes de um  Moçambique em plena decomposição.

Depois da (nossa) experiência -falhada- do socialismo, do dantesco espectáculo do (nosso) capitalismo, que se demonstra uma maquina imoral de produção sistémica de corrupção, de desigualdades e de milhões de miseráveis, a única injunção que se depreende é a velha, e sempre actual, questão do filosofo Inglês David Hume (1711-1776), o que pode cimentar  uma (a nossa) sociedade? No  nosso caso  isso se articula numa hermenêutica do fortalecimento da nossa moçambicanidade, no sentido de pertença e da consequente empatia e solidariedade.

No modo de considerar a relação entre a esfera económica (que podemos chamar mercado) e a esfera social (solidariedade) prevaleceram, historicamente, duas orientações principais. De um lado, aqueles que veem na extensão dos mercados e na lógica da eficiência a solução de todos os males sociais, da outra, aqueles que veem o avanço dos mercados como uma desertificação da sociedade e, por isso, a necessidade de proteger-se deles. A primeira versão – que tem as suas raízes em algumas tradições do pensamento libera l– considera o mercado como um ente a-social, uma vez que este, o social, é distinto da mecânica do mercado, instituição ética e socialmente neutra. Ao mercado pede-se a eficiência e por isso a criação da riqueza. A solidariedade, começa onde acaba o mercado, favorecendo critérios para subdivisão da riqueza produzida.

Nos antípodas está a visão que vê o mercado como essencialmente anti-social. Esta visão que tem a sua origem nos Karls Marx e Polanyi, considera o mercado como lugar de exploração e de dominio do forte sobre o fraco e, por isso, o mercado como ameaça da sociedade; “o mercado avança sobre a desertificação da sociedade” (Polanyi). Daqui o apelo para proteger a sociedade do mercado com argumentos de que as relações humanas (como a amizade, a confiança, a reciprocidade não instrumental e o amor) são destruídas com o avanço da cultura do mercado. Esta visão tende a ver o económico e o mercado como de per se desumanizantes; como mecanismos destrutores do capital social indispensável para toda e qualquer convivência autenticamente humana.

Moçambique balanceou nestas duas posições, com resultados desfavoráveis. A ideologia colonial (toute proportion gardée) e o actual capitalismo tem em comum o ideal (ultra) liberal – desprendido da sua vertente política, a liberdade e a democracia – e o nosso pretérito socialismo perfez o essencial da sua pauta nos ideais marxianos. Existe uma via de fuga, uma terceira via?

A primeira cátedra de economia no mundo (1753) foi instituída – para um ilustre desconhecido – na Universidade Federico II de Nápoles, duas décadas antes da publicação da Riqueza das Nações por Adam Smith (1776). Como Smith (Teoria dos Sentimentos Morais), Antonio Ginovesi (Meditazioni filosofiche) vinha da filosofia (Ética). Porém, enquanto o escocês é saudado como o pai da economia que deu origem ao capitalismo, Antonio Genovesi é hoje celebrado como pai da economia civil (Riccardo Milano), que se entende numa perspectiva cultural de interpretação da inteira economia fundada sobre princípios de reciprocidade e de fraternidade.

A Weltanschauung de Genonesi é distante do universo de Smith e, de consequência, as suas visões do funcionamento da sociedade e da economia apresentam características contrastantes. Na base da ideia de Adam Smith está a exaltação das virtudes individuais e auto centradas que permitiriam a consolidação de uma estrutura social e económica de tipo capitalista. Mutatis mutandis, a pedra angular do edifício teórico do pensador Partenopeo são as virtudes de socialização – benevolência ou/e altruísmo – que permitiriam o funcionamento de uma estrutura social e económica mais civil e cooperativa.

A perspectiva da relação mercado-sociedade que emerge da leitura do pensamento de Genovesi, coloca-se também numa perspectiva diferente da postura socialista dos karls.  A ideia principal (a proposta) de uma economia civil é viver uma experiência humana, no interior de uma vida económica normal, não ao lado, antes, ou depois. Ela vai para além da perspectiva liberal que vê no económico um lugar neutro, baseado unicamente na troca de equivalentes, uma vez que é o próprio momento económico que, como na presença ou ausência destes princípios, torna-se civil ou in-civil. Mas também vai para além da concepção que o dom (M. Mauss) e a reciprocidade são apanágio de outros momentos ou esferas da vida social. Todas as sociedades humanas precisam de três diferentes princípios autónomos para se poderem desenvolver de maneira harmoniosa e serem capazes de futuro: a troca de equivalentes, a redistribuição da riqueza e a reciprocidade.

Para o Partenopeo é necessário buscar, in primis, e com base em critérios axiológicos, os comportamentos mais apropriados nos diferentes contextos, os objectivos a partilhar e perseguir no interior da comunidade política e, por fim, as informações a selecionar e transmitir ao legislador para dar conteúdo as leis do Estado. Não há desenvolvimento civil e económico sem confiança no governo, nos magistrados e entre os concidadãosA fé é uma questão de reciprocidade genuína e não só de contractos e, por isso, a  confiança é a corda que liga e une as pessoas. Porém, a fé pública é um capital que se constrói fora do mercado e depois o mercado utiliza.

Em Aristóteles a lei (nomos)  da casa (oikos) acabava onde iniciava a lei da cidade (polis); a primeira baseava-se na lei do sangue (jus sanguinis) e a segunda sobre a Philia (amizade e reconhecimento) entre iguais. Em Genovesi o que prima é o principio da felicidade (eudemonia) pública  e da harmonia na justiça. A economia (e a política) é (são) intendida(s)  como ciência (s) do bem comum.

Com um juízo digno da actualidade, ele imputa a falta de fé pública a responsabilidade do parco desenvolvimento do reino de Nápoles – o que é extensível ao Moçambique de hoje – e acusa a riqueza exorbitante de alguns cidadãos – e o ócio de outros -, como a causa da infelicidade e da miséria do maior número.

Como para os humanistas o mercado é, para Gionovesi, uma questão de philia (amizade, equivalência). Ele vê as relações económicas e de mercado como de mútua assistência.  Nas Lezioni di Economia Civile (1765), o napolitano resume o paradigma da economia civil -pensado como alternativo mas não antagonista da economia política – a partir de quatro princípios fundamentaisdeve ser livre e regrada, deve tutelar a economia de um pais, deve prever o uso do dinheiro  como meio para o bem estar integral da sociedade, deve manter a independência de cada povo.

No quarto principio ele adverte sobre o perigo da sujeição, por isso, da necessidade de depender de outros povos o mínimo possível“Quanto mais um povo depende de outros povos, mais é pobre e dominado”. O antídoto a dependência reside na educação, uma  paideia que tenha como pendor axiológico o sentido de pertença e o domínio das artes mecânicas (o saber fazer). A questão de Ginovese não era ideologia mas moral. Diferentemente do escocês que renunciou a busca da igualdade no altar (pré-textual) da mão invisível, o napolitano atribui a filosofia a missão pedagógica da formação do homem.

Em pleno século XVIII – ainda dominado pelos resquícios da metafísica e pelo elitismo educativo – Ginovesi  fez a apologia daquilo que no léxico moçambicano se chamaria de massificação da educação (o que valeu o índex aos seus livros ), baseada no conhecimento das emergentes ciências experimentais. O seu projecto educativo não se preocupa só com os meios mas deve alimentar a esperançadar aos jovens razões e condições de se apaixonarem, de desejar; um jovem capaz de paixão  é também capaz de ação, de fazer opções decisivas para o futuro e contribuir para a regeneração da sociedade.

Na sua Logichetta (lógica para orientar-se na vida) ele integra o célebre requisito platônico para entrar na academia – o conhecimento das ciências matemáticas – com um ulterior requisito, o conhecimento da ciência das coisas, porque o fim último da educação/universidade não é formar chatos, pedantes ou brilhantes conversadores, mas cabeças pensantes, o que significa “homens cheios (ávidos) do sentido da verdade e piedade, de  solidariedade, de justiça, de honestidade, de amizade, homens capazes de ser a classe dirigente”. E o projecto de libertar a liberdade (Eleuteria) da ideia de ser só uma faculdade de escolher para ser também, e sobretudo, a capacidade de aderir ao bem.

Por isso, o objectivo da educação é a razoabilidade e não simplesmente a racionalidade. Para a racionalidade chegam as regras dos silogismos (Aristoteles) e cálculos lógicos (Wittgenstein), para a razoabilidade ocorre a pratica da virtude; a razoabilidade tem a ver com a sabedoria e não só com a habilidade intelectual. Trata se de conformar o caminho da existência pessoal com a convivência inter humana e, para isso, precisamos conjugar o rigor existencial com a consciência ética, com a memória histórica e com a responsabilidade política.

política deve promover seres humanos íntegros e responsáveis, deve fazer com que todas as pessoas que compõem o Estado possam fazer um corpo estreito, o mais denso possível, diante dos egoísmos individuais que riscam  de desmembrar o pais.

Apostar tudo no egoísmo e na busca da própria felicidade privada significa falsificar a existência e soçobrar na pratica da maldade. Esta indicação chega para confutar a lógica da política feita para o poder e da economia construída para a acumulação do capitalO verdadeiro progresso humano, civil e social, é a mudança de forma como estamos na vida em comum.

Ginovesi está na fronteira entre a ética e a economia, o que leva alguns autores a  considerarem as Lezioni di Economia Civile como uma ética aplicada. Ele não só inspira a via da economia da comunhão e da economia civil, mas deixa aberto o horizonte de sentido no qual – desde a segunda metade do século XX – desenvolveram-se a economia da comunidade, a bioeconomia, o movimento do decrescimento (Serge Latouche), a economia do bem comum, a economia de libertação (Euclides Mance) que esta na origem dos programas da bolsa familia e da fome zero no Brasil de Lula.

Ginovesi levanta-se contra os impostores que, por avidez de ganhar ou por ambição de poder – ou porque deixaram-se enganar por uma falsa luz da verdade e/ ideologias -,  enganam as pessoas e as nações e fazem nas acreditar inverdades e enveredar por caminhos que os levam ao abismo. Não é tanto um ataque aos outros – gurus das finanças, da tecnociência, aos manipuladores das consciências colectivas, as fake news, aos doadores, aos imperialistas ou aos neocolonizadores – é antes de mais, uma chamada a razão e a consciência a cada um de nós, para aquele tanto de impostura -Sartre diria de ma fé- na qual caímos se continuamos a viver de maneira egocêntrica e fugitivos da responsabilidade da vida comum.

A actualidade e a pertinência da Economia Civil reside no facto de ela não nos propor um antagonismo (hoje impossível) com os mercados, nem uma equivoca compreensão do dom gratuito (Gerald Berthoud), mas uma possível (e desejável) mudança de postura moral na maneira de estarmos ( ser) com os outros (Heidegger) e na maneira de fazer comunidade (cum munia: dons partilhados).




Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Augusto Hunguana

Marcos Carvalho Lopes

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