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Filosofia e poiesis

A linguagem é a quarta dimensão: a dimensão das tensões entre o possível e o impossível

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Durante anos me dediquei ao problema da caracterização e definição do que é filosofia. Como resultado dessa preocupação, posso dizer, muito sinteticamente, o que entendo ser a filosofia. Num sentido, a filosofia é a tentativa de racionalmente resolver problemas que não estaríamos em condições de solucionar com a ajuda de outras atividades do espírito humano. Penso que essa já é uma caracterização adequada, porém, insuficiente.

            As minhas reflexões na filosofia da linguagem, paralelamente, levaram-me a outros resultados. À diferença da filosofia analítica da linguagem, que fundamentalmente pensa e se limita ao mundo empírico privilegiando o presente de indicativo, vejo a linguagem como parte de um processo criativo da realidade.

            O empirismo, desde o final da época medieval e, notadamente, na época moderna com Locke e Hume, concebe um mundo dado prévio à razão. “Nada há no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos” é o célebre lema dessa corrente de pensamento. Nem o positivismo do século XIX, nem o neopositivismo do século XX foram além dessa concepção da relação entre pensamento e realidade. O fato é que essa visão leva implícita uma filosofia da linguagem segundo a qual esta não faz mais do que nomear objetos e referir fatos. A grande contribuição que o empirismo lógico pensou ter feito foi a de explicitar a relação entre linguagem e mundo. O Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein é a obra que sintética, e hermeticamente, propõe as teses fundamentais dessa visão. A visão de Wittgenstein não é, propriamente, original. Leva a marca da profunda influência de Frege e Russell.

            O que foi que estes dois filósofos deram a Wittgenstein. Deram-lhe estas intuições: (1) há uma estrutura lógica na linguagem que a linguagem coloquial oculta, (2) a linguagem é significativa na medida em que é referencial e, (3) esse caráter referencial consiste em reproduzir o sentido do mundo. Desse modo, haveria uma estrutura lógica do mundo, anterior à linguagem, que a estrutura desta última deve incorporar. Haveria, então, um mundo dado, uma estrutura lógica dos acontecimentos desse mundo e uma linguagem adequada, estruturalmente, a reproduzir essa lógica do mundo. Mundo, fatos, linguagem. Essa é uma sequência lógico-ontológica. O mundo possui uma estrutura lógica que os fatos mostram. Compreender um fato complexo é entender a lógica dos acontecimentos.

            Esta visão oculta uma concepção ingênua da linguagem, como depois reconheceria o próprio Wittgenstein — e, acrescento, esconde também uma metafísica e uma ontologia ingênuas. Com efeito, se a linguagem se limitasse a isso, ela meramente reproduziria o que está no mundo. Haveria, assim, uma relação de passividade entre sujeito e mundo. Aquele, afetado pela ocorrência dos fatos, estaria limitado a reproduzir sua lógica por meio das palavras.

            Não é acidental que esta concepção descanse num atomismo linguístico. Isto é, não é por acaso que o empirismo, já em Locke e em Hume, tenha imaginado que a linguagem é constituída por termos que inferimos, por abstração, da realidade. Todos nossos conceitos abstratos, dizem eles, são, em última instância, ideias que provêm de sensações particulares ou de impressões simples. O atomismo linguístico de Wittgenstein e dos neopositivistas do século XX, portanto, não é mais do que o desenvolvimento, em termos lógicos, das intuições que os empiristas modernos tiveram sobre a linguagem. O mundo empírico, dado, é anterior, a linguagem que o exprime, posterior. Os dois compartilham algo: uma lógica.

            Minhas reflexões neste campo me levaram a resultados completamente diferentes. A linguagem, em primeiro lugar, não é uma mera representação da realidade. E nem tampouco uma representação individual, isto é, de seres isolados que estão fadados a ver tais fatos e falar sobre eles. Pois a concepção ingênua do empirismo pressupõe que pessoas diferentes, mesmo de culturas que nada tenham em comum, olhando para o mesmo lugar, perceberão o mesmo “fenômeno”, o mesmo “fato”, a mesma “coisa”, o mesmo “acontecimento”.

            Não estou em condições de explicitar aqui tudo aquilo que me levou aos resultados que direta ou indiretamente mencionarei, já que não tenho tempo para isso, pelo que vou me limitar a apresentar algumas conclusões às quais cheguei e que apresento como teses.

            Não entramos num mundo já dado. Entramos num mundo “falado”. Isto, que parece pouco importante, tem consequências decisivas. Pois esconde o fato que nem todos falamos o mesmo sobre o “mesmo” mundo. Aliás, a “mesmidade” do mundo devemos aqui pôr sob questão. Que mundo é esse que é o mesmo para falantes diferentes. Falantes que poderiam nem pertencer à mesma comunidade. Comunidade que, por sua vez, chamada “a mesma”, não o é, ou, melhor, é e não é.

            Ao nascer nos incorporamos a um mundo que nos é dito, indicado, negado, contado e proposto. Dessa maneira, começamos nossas vidas entrando num mundo que é consequência de anseios, lutas e sofrimentos passados. Não entramos, pois, simples e diretamente no presente. Num sentido fundamental, começamos nossas vidas não compreendendo bem o presente por estarmos rodeados de termos que denotam um algo que ocorreu e que, dali, volta a se projetar. O passado, num sentido, se pós-projeta. Para entender nossos pais, nossos avós, nossos mais velhos, completamente, precisamos saber, antes, que ocorreu. Que lhes ocorreu. Mas o próprio “ocorrer” não é algo perceptível, como um fato supostamente puro dos empiristas. “O que me ocorreu” pode ser, na verdade, a ausência de um acontecimento. “O que me ocorreu” pode significar “não ter me tornado médico”, “não ter conseguido jamais viajar aonde queria”, “não ter chegado nunca a ser o que quis”. Esse passado se projeta, se pós-projeta, na verdade, como um futuro negativo do próprio presente. Pois o que foi futuro para o passado pode ser o nosso presente. Nesse sentido, a criança nasce, ou pode nascer, no futuro de um passado que não se realizou para os mais velhos, para a família, ou para a comunidade como um todo. Essa criança pode estar vivendo no presente vazio, não preenchido, dos seus pais, da sua família, ou da sua comunidade. Pode viver, assim, num presente negativo. As mensagens, os diálogos, o que esses falantes dizem uns para os outros não são, pois, simplesmente, asserções sobre um presente imediato puro, desprovido de qualquer carga pretérita e futura. São, pelo contrário, enunciados que fazem referência, clara ou encoberta, melancólica ou alentadora, ao que ocorreu ou não ocorreu, e ao que ocorrerá ou não ocorrerá. A amargura de certas palavras ou o dissabor de determinadas expressões podem exprimir uma realidade que, no fundo, só os falantes de um determinado grupo e cultura podem completamente entender. Desse modo, nem eles, nem nós, nos apropriamos do presente sem mais. Nem o comunicamos sem mais, como se não aludíssemos a um determinado não-ser, a um determinado “não-está-sendo-como-o-imaginei”. O mundo de uma determinada cultura, de um determinado grupo, poderia ser justamente esse: um não-sendo.

            Ora, de qualquer maneira, é um não-sendo que é. Já que não é possível que tudo aquilo que individual ou coletivamente queremos seja o mundo que temos. O presente, no qual nossa linguagem se concretiza é, assim, o resultado de planos e frustrações passadas e anseios projetados no futuro. O futuro, de outro lado, não é simplesmente aquilo que absolutamente não é. Pode ser aquilo que, para nosso desespero, tem altíssimas probabilidades de vir a ser, ou de estar quase já-sendo. Tudo isso nos faz ver o mundo de uma determinada perspectiva, não só em termos individuais como coletivamente. Em síntese, o puro ser, o puro presente, se é que assim podemos chamá-lo, aquele do fato puro do empirista, é uma quimera. Tanto em termos da linguagem natural como em termos da linguagem científica. Pois tudo o que vale para a linguagem coloquial, aplica-se à linguagem científica que, como bem disse Hobbes, é hipotética. E nesse seu caráter hipotético repousa a dependência teórica, a expectativa teorética, isto é, de que as coisas sejam como a teoria pensa que devam ser e não sejam como ela proíbe que sejam. Assim, as linguagens natural, científica e filosófica têm algo em comum: são a quarta dimensão em que nos encontramos — a dimensão das tensões do possível e impossível.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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