0

Filosofia: os paradoxos do tempo

A filosofia vive, não pela unanimidade sobre algo, mas pela contradição  sobre tudo

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

Dedicado a Janos Biro.

            Nada mais óbvio que pensar que estudamos história da filosofia para saber o que ela é. As marcas deixadas no tempo — ao que parece — iriam delineando ou, melhor ainda, definindo o que é a filosofia. É racional pensar que devemos dar tempo ao tempo e estudar o processo durante o qual algo se concretiza para entender, finalmente, o que esse algo é. Pensemos na expressão: o processo durante o qual algo se faz, se realiza, se completa. Veja-se: “o” processo. Tendemos a identificar, a individualizar algo e o dotamos, ao fazer isso, de certas propriedades. Algo, no entanto, está aqui pressuposto. Pressupõe-se que há um início, um meio e um fim. Pressupõe-se um percurso em que algumas etapas de acabamento são cumpridas. Depois desse processo chegamos à totalidade, ao fim, e, assim, podemos ver a concretização de algo. Quando pensamos que devemos estudar história da filosofia para entender o processo que a leva a ser o que ela é, estamos abrigando, implícita ou explicitamente, tais pressupostos. Mas, é correto tê-los? Se pensarmos detidamente, esses pressupostos não estão tão bem sustentados como parece, quando se trata de responder à pergunta: o que é a filosofia. Não estão bem sustentados, isto é, se para responder aquela pergunta pensamos que devemos estudar a história dessa atividade.

            Com efeito, temos realmente um “início, meio e fim” na filosofia? Alguém poderia responder: “sim, temos pelo menos um início: Tales de Mileto”. Aí surgem, no mínimo, dois problemas. Há quem pense, e com boas razões, que Tales não foi um filósofo em sentido rigoroso, mas um físico. Outro poderia dizer: mas quem decide que a filosofia começa com a filosofia ocidental? E teria todo o direito de reclamar que se identifique “a” filosofia com o que o pensamento ocidental decidiu que seja. De modo que quando perguntamos pelo “processo durante o qual a filosofia se fez o que é” estamos aludindo a um processo nada concreto. Estamos fazendo referência aos nossos próprios conceitos do que é e deva ser a filosofia. Já fazemos a pergunta, isto é, convencidos de que os critérios definicionais dos quais partimos, consciente ou inconscientemente, são os únicos válidos. Quem, então, deve decidir onde começa o tal processo? Parece que a resposta é: ninguém está em condições de decidir nada, pois ninguém ocupa uma posição tão privilegiada, nem tem tal direito para decidir qualquer coisa sobre seu início! Assim, fica em aberto o problema de quando, onde e com quem se inicia o processo durante o qual a filosofia se faria o que eventualmente ela é.

            Suponhamos que concordamos que ela começa num determinado momento com um determinado pensador. A nova pergunta não é menos problemática que a primeira: e onde termina tal processo? Isto é, quando a filosofia chega a se consolidar como uma disciplina ou atividade específica, determinável e definível? Se não há consenso sobre seu início, menos acordo há sobre esta outra questão. Porque muitos filósofos diriam que a filosofia é o que ele pensa que é. Ou, ainda mais, que se há um processo em que ela se constitui, o processo termina com ele, com esse determinado pensador e com seu próprio sistema filosófico! Parece um exagero dizer isso, mas não é. Hegel, sabemos, pensava que a filosofia terminava, completava-se e realizava, finalmente, com seu próprio sistema e na sua própria cabeça. Já outros filósofos, também importantes, acham que o que foi feito antes deles tem pouco ou nenhum valor. Bacon, para citar um exemplo radical, achava que os gregos eram “velhos tagarelas cuja filosofia era farta em palavras e estéril em obras”! O jovem Wittgenstein foi mais duro ainda ao manter, no Tractatus, que a história da filosofia, como um todo, não constitui processo algum, que não vem de parte alguma nem vai para lugar nenhum, que é um amontoado de disparates!

            A verdade é que as mais díspares concepções sobre filosofia as encontramos, não em leigos, mas nos próprios filósofos. O próprio tempo, assim, é o processo dos paradoxos em que a filosofia se fez. Assim, a história da filosofia parece consistir em, fundamentalmente, isto: nada aprendemos dela, a não ser seus paradoxos. Para que estudarmos história da filosofia, então? Não para saber o que ela é, porque ela nada é, mas para saber o que foi. E isto, paradoxalmente, nos leva a um resultado positivo: o único que podemos esperar da filosofia, no futuro, é que ela continue esse processo incessante de contradições, nos surpreendendo e maravilhando com cada nova maneira em que algum desconhecido ou alguma desconhecida farão filosofia, inventando seus próprios conceitos para resolver seus próprios problemas. Com não houve, não haverá consenso nem unanimidade. Que os novos venham para contradizer os de hoje e os de ontem. Nessa contradição ela viveu, nesses paradoxos ela vive. Não se contradizendo, ela morrerá.


*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *