Severino Ngoenha e Carlos Carvalho
Apenas chegado aqui, pensei dever em primeiro lugar certificar-me se verdadeiramente Dionísio era possuído pelo ardor filosófico como por um fogo ou se então as notícias que nos chegavam a Atenas eram falsas. Nesse sentido, falei com o ele não para lhe explicar fosse o que fosse, aliás, ele também não me perguntou nada porque presumia saber e ter conhecimentos suficientes (Platão, Carta VII).
Dionísio I de Siracusa (Sicília) não era o Rei-Filósofo nem o Filósofo-Rei que Platão procurava. Confrontado com o fausto e a corrupção do reino o monarca não suportou a ousadia e confrontação do filósofo e vendeu-o como escravo.
Em 2004 a BBC convidou os seus auditores a designar o maior filósofo de todos os tempos. Por uma intuição quase divina, os membros da International Plato Society, sentindo o vento do Olimpo a mudar de direcção, convidaram todos os seus seguidores a votarem: era necessário que Platão continuasse a reinar sobre o mundo das ideias. Escândalo! Marx ganhou com 27, 93 porcento de votos e Platão ficou em quinto lugar, com 5,65 % de votos, muito atrás de David Hume, Ludwing Wittgenstein e Friedrich Nietzsche. Esta derrota é anedótica porque ninguém abandonara os diálogos socráticos. Há séculos que notre cher Platon (como lhe chama carinhosamente Alain Badiou) governa a filosofia, que todos pensamos com ele ou contra ele. Aliás, o primado popular de Marx (e a grande influência que ele teve sobre os maiores pensadores do Sec. XX), deve-se, provavelmente, ao facto de ser percebido como a encarnação intelectual moderna do ideal platónico da justiça.
Todo o filósofo ou académico (da Academia fundada por Platão depois dos dissabores com Dionísio I) deve ousar (audi) tomar a palavra em público (é o que Kant chama de Iluminismo), e quando o faz realiza, por sua vez, a sua viagem a Siracusa melhor, a Moça-cusa ou às afro-cusas do nosso mundo, cada vez mais pequeno e grande ao mesmo tempo.
Esta metáfora platónica é inscrita no coração mesmo da pátria filosófica e da intelectualidade (desde Voltaire) que se percebe e é percebida como a única vanguarda. Desde sempre, a busca do saber é uma viagem, um caminho perigoso em Direcção a si próprios, caminho que atravessa as cidades com as suas leis, assimetrias – luxos, lixeira, esgotos – e as suas mais ou menos confortáveis espinhosas e insalubres cavernas.
Porém, recordemo-nos sempre que a sabedoria não é a Kultur (cultura) de Cícero, o enciclopedismo de Diderot, ou a erudição de Pico da Mirandola (tudo o que aos olhos de Platão era actividade dos sofistas). A filosofia é um compromisso existencial com a Aleteya (verdade) e com a Justiça, que está sempre diante de nós (Derrida).
A sabedoria não é acumulação de fórmulas, não se faz com etiquetas, nem com esquemas baratos. A sabedoria não tem nada que ver com a lógica da comunicação, aquela cultura que se pode resolver por meio de sistemas semióticos, de códigos, de locuções ou de horizontes hermenêuticos, diferentemente compreendidos. A sabedoria não é um método mas uma via. É verdade o filosofo é um dialético, mas não é só isso, ele não é um especialista ou técnico da definição. A diferença não é só entre dialéctica e retórica. A dialética de quem busca o saber não é dirigida a si próprio ou a qualquer actividade particular; o seu saber não é um discurso (não é uma narração), não é uma demonstração definitiva, é essencialmente um ethos que podemos chamar político, bem sabendo o que significa esta palavra para Platão e que está na origem da sua viagem a Siracusa.
A busca da sabedoria é assim ‘ciência’ e ‘não-ciência’. É ciência enquanto está na raiz de todas as ciências e das suas escritas mais autênticas; não o é porque se a sabedoria se torna uma ciência no sentido da ciência, perde-se no naturalismo, no dogmatismo e na superstição. A busca da sabedoria apresenta-se como uma ciência inactual, como uma ideia e uma meta impossível; essa não possui nenhum pascaliano porto-seguro, nenhum cartesiano método garantido mas é via e procura infinita da nova Atlântida, nossa Moça-cusa que ainda não existe (Craveirinha) e espera ser construída pedra a pedra por cada um de nós. Por isso a busca da sabedoria (como a filosofia), pergunta-se continuamente o que ela é sem nunca poder responder, porque a sabedoria é ( como a moça-cusidade) uma ideia que não se pode encarnar em nenhum discurso e em nenhuma definição. Essa está perenemente a caminho em direcção à equidade, sempre a construir. Porém, ela tem que ser sempre prudente para não confundir e não cair na tentação de qualquer Tebas terrestre (partidos, governos, ONGs, igrejas, guetos, nomenclaturas) com a Siracusa celeste e o ideal da nossa moçambicanidade
Não obstante estas ambiguidades e paradoxos ou talvez exactamente por causa delas, a busca da sabedoria apresenta-se como uma instância ou uma promessa de liberdade. Como dizia o jovem Heidegger, a filosofia, como a sabedoria, é ateia. Isso não significa que ela não tenha Deus ou que esteja contra Deus, mas que é para além de todo saber sacro ou sacralizado. Liberdade desesperada, se quisermos, mas liberdade inaudita; promessa de liberdade que encarna este ideal espinoziano.
Ciência que não é ciência, palavra que não se pode dizer. Discurso que não se pode pronunciar e ainda menos escrever, pergunta que não se pode responder, ideia que não se pode activar, viagem sem meta, iniciação nunca terminada, ethos invisível: eis o efémero e claudicante barco da busca filosófica da sabedoria, na sua encruzilhada de paradoxos e contradições…
Quem quer embarcar nele? Quem quer participar, com o risco de si próprio, na construção desse efémero Moça-cusa? Porque esta nave de tolos (na qual embarcaram e sucumbiram mondlanes, macheis, simangos, kavandames…) desde há séculos abre itinerários, sugere rotas e orgulha-se de reivindicar para si essa responsabilidade (Diógenes).
É por isso que outros navegadores, Bakacossa, Chiziane, Mabunda, Ídasse, Azagaia, Viera Mário (…) buscaram outras rotas, afastando-se do caminho traçado por Platão sem contudo nunca perderem de vista Siracusa.
Nos últimos anos embarcámos uma multitude de jovens (trouxemos a filosofia e o ideal platónico para todos) que vai aprendendo (esperamos), nas (também efémeras) escolas (o que é possível) da arte da navegação: sentido crítico, domínio da linguagem e de conceitos, aprendizagem de uma relação cooperativa com a lei, negociação de regras necessárias ao desenvolvimento de um debate democrático, adesão a uma ética comunicativa (Habernas) e cordial (Adela Cortina), exigências intelectuais de questionamento de pseudo-certezas, problematização de noções, de argumentação racional de teses e de objecções que garantam a filosoficidade dos debates, a preservação do debate democrático da demagogia, da doxologia e da sofística…
Esta preparação é necessária para evitar que os jovens embarquem em Ematuns (com estaleiros franceses, bancos suíços, aldrabões libaneses, corruptos moçambicanos…), barcos que não pescam e ficam atracados no porto porque não houve a elementar prudência (ou interesse) de verificar se a rota precisava de cabotagem (…). Mas os jovens têm sobretudo que aprender que são eles que precisam do mar para navegar em direcção a Siracusa e não é o mar que precisa deles…
A nossa primeira viagem é nas encruzilhadas da memória, nos tempos que devem ser sempre lembrados (escravatura, colonialismo, chibalo, guerras orquestradas, e o Banco Mundial, não responsabilizável, que se engana – se é que se engana – nas suas receitas/imposições) que estão na origem ou favoreceram as discrepâncias sociais, a corrupção e põem a causa as nossas vidas.
O nosso livro de bordo compreende três itinerários: a tradição filosófica com as suas metamorfoses históricas, rupturas metodológicas e epistemológicas – Vattimo pergunta-se o que a filosofia pode fazer da sua história – ; um pensamento africano, livre da sua suposta (antropológica) génese tempelsiana e aliada à mais antiga, pertinente, constante e necessária determinação de um Renascimento africano (Garvey, Dubois, Nkrumah, Lumumba, Nyerere, Cabral, Mandela…), de gritar com Cesaire: E está de pé a negrada/ a negrada arriada/ inesperadamente de pé/ de pé no porão/ de pé nas cabines/ de pé na ponte/ de pé ao vento/ de pé sob o sol/ de pé no sangue/ de pé e livre…
Por isso e para isso é imperioso confrontar-se com o(s) passado(s) como obra(s) humana(s) feita não pela natureza mas pela cultura (Vico); com a tradição, que não é o passado mas presente e sobretudo futuro. Passado e tradição são o fundo a partir do qual as mudanças podem advir com sentido e durabilidade.
Toda a tradição – do Sul que governou mal, do Norte que governa pior e do centro que reivindica regionalisticamente a sua vez de sacar/saquear; e toda esta tradição tribalista que a Frelimo instaurou – é condenada a repensar-se e se renovar sob pena de desaparecer. Sem tradição seríamos uma dessas sociedades frias descritas por Lévis-Strauss, sociedades fossilizadas que evacuaram a história. Por isso, em Moçambique e África, é imperativo frequentar as obras dos que nos precederam (Césaire, Cheik Anta Diop, Fanon), mas não para assimilá-los acriticamente mas para apreendê-los, o que de per se, é já um acto de fundação.
Desse passado devemos ter uma visão crítica, tirar lições para nos prevenirmos e evitarmos falsas certezas. Por detrás desta crítica está a necessidade de uma maior liberdade de opinião, de debate de ideias, e da necessidade de enveredarmos por um caminho de concertação, de compromisso e de busca contínua de consensos.
A nossa Moça-cusa tem que ser uma revolução na maneira de pensar. Não se trata simplesmente de uma postura epistemológica e não se pode restringir tal revolução ao positivismo, mas tem que se chegar a uma compreensão mais larga da filosofia, onde a ciência está em ligação estreita com o estatuto do ser humano enquanto tal que, na lógica de Kant se declina em: ‘o que posso saber, o que devo fazer, o que é permitido esperar, em suma, o que é o homem?’
Apesar dos esforços que engodamos, Siracusa permanece para nós ainda distante, um destino a conquistar, uma meta a descobrir. O moça-cusa é ainda um ‘já’ e ‘ainda não‘, porque ainda não enveredámos por num caminho que ponha “milhões de braços na construção de uma só força”, o que se tornou urgente…
Quem quer participar na edificação do Moça-cusa? Quem quer embarcar nos paradoxos e incongruências desta nave sempre à deriva e sem meta fixa? A bordo filósofos, académicos e intelectuais; subamos nos barcos, temos um Moçambique a construir, na verdade. Mas atenção, aqueles que têm mal de mar, os intelectuais orgânicos (Antonio Gramsci) que não se podem distanciar até das aberrações e incongruências dos próprios partidos, os mercenários da pecúnia (os que não se podem afastar dos ditames das embaixadas e da comunidade internacional); aqueles que procuram a todo o custo um porto seguro (Banco Mundial, FMI), é melhor não embarcar para não comprometerem a viagem, nem pôr em em perigo os outros passageiros!
O mar está cheio de insídias: mares altos, ventos, tempestades, animais, piratas; subam só aqueles homens e mulheres prontos a fazer frente às intempéries e às vicissitudes dos tempos… Os intrépidos que não temem ser afogados no Mediterrâneo da Europa e europas que defendem as injustiças do status quo, ou os nyusianos gases lacrimogénios com que são regados os pobres que gritam pelo pão; os bancos mundiais que não cessam de nos submergir com medidas que nos afogam numa ulterior miséria
Avante! subam depressa, temos um moça-cusa a construir, milhares de sonhos à espera de ser realizados. Uma última advertência, nesse barco ecológico (sempre avariado como o „Inhaca“) e sem combustão (o gás do Rovuma pertence a outros e a alguns de nós) é preciso remar; remar sempre, remar com força e, sobretudo, remar juntos. Foi/ é/ será a este preço que se conquistou/ conquista/ conquistará a liberdade, o outro nome da Justiça. Platão, depois de escapar da escravatura, fez mais duas viagens a Siracusa e continua viajando pelos mares e Siracusas do mundo, conosco ou através de nós na busca do Rei-Filósofo, outro nome da Justiça.
Severino Ngoenha, Carlos Carvalho
Prudência, moça (cusa), rei-filósofo, opinião.
Falta um governo da opinião para cultivar a prudência. A moça (cusa) e o rei-filósofo deve ser o produto da prudência. O rei-filósofo está fora de si mesmo, portanto, não sabe o que é bom para si, nem para os outros. Simbolicamente caiu no poço por falta da prudência, daí os créditos ocultos.