“A descolonização implica a necessidade urgente de desafiar completamente a situação colonial.”
Cornel West
Frantz Fanon é o maior intelectual revolucionário de meados do século XX. Ele é também o mais relevante para o século 21. Sua genialidade teórica, arte literária e coragem política são inegáveis. E sua integridade pessoal, honestidade total e tenacidade autocrítica são indiscutíveis. Como a revolução bebop de Charlie Parker na música moderna, as obras e testemunhos de Frantz Fanon alteraram e quebraram os paradigmas predominantes na filosofia, cultura e política modernas. Semelhante ao intelecto sonoro subversivo de Nina Simone, Frantz Fanon tornou inevitável o confronto com as realidades históricas da descolonização. Em suma, ele é uma figura imponente em nosso tempo neoliberal e neocolonial porque lançou uma luz sobre o lado aterrorizante e terrorista do imperialismo europeu supremacista branco – uma luz que nos permite seguir o rastro de como essas galinhas voltaram para casa para empoleirar-se ao redor do mundo.
Os Condenados da Terra (1961) foi o último testemunho da vocação profética de Fanon – na tenra idade de 36 anos. Essa vocação foi motivada por um profundo amor aos colonizados e fundamentada em um intenso amor pela verdade de seus feitos e sofrimentos. Nos primeiros momentos deste livro clássico perene, escreve ele, “a descolonização, portanto, implica a necessidade urgente de desafiar profundamente a situação colonial. Sua definição pode, se quisermos descrevê-la com precisão, resumir-se nas conhecidas palavras: ‘Os últimos serão os primeiros’. A descolonização é a verificação disso.” Sua alusão bíblica a Jesus (Mateus 20:16) e declaração revolucionária de uma “luta assassina e decisiva” entre colonizador e colonizado, invasores (occupier) e invadidos, nos faz confrontar a violência nua e a força bruta do poder assimétrico do dominador sobre o dominado. Fanon não nos permitirá começar nossa discussão com a contra-violência dos oprimidos, mas sim com o terror e o trauma de longa data e muitas vezes esquecido da violência estrutural e do horror cotidiano disparado pelas realidades coloniais nas imprescindíveis pessoas comuns.
Quando Fanon afirma que “o mundo colonial é um mundo compartimentado”, ele nos compele a reconhecer que o colonialismo é uma guerra bárbara sustentada contra os colonizados, sancionada pelos valores ocidentais. “Agora acontece que quando os colonizados ouvem um discurso sobre a cultura ocidental eles sacam seus facões ou, pelo menos, verificam se estão à mão… No período da descolonização, as massas colonizadas torcem o nariz para esses mesmos valores, os cobrem de insultos e os vomitam.”. A acusação de Fanon ao colonialismo europeu é mais do que uma rejeição epistêmica fantasiosa do eurocentrismo ou um mero momento nietzschiano de oposição contra uma visão dialética de libertação.
Em vez disso, Fanon está aprofundando, refinando e “esticando levemente” a análise marxista ao casar uma crítica implacável ao capitalismo predatório e seus tentáculos imperiais com uma análise impulsionada pelo Império de uma supremacia branca bélica que permeia as próprias almas dos súditos coloniais, do mesmo modo, que molda todas as esferas da sociedade colonial. Como um grande músico de jazz, Fanon encena e incorpora modos de contraponto que fundem criativamente a crítica de Karl Marx às economias capitalistas, a filosofia da guerra de Carl von Clausewitz (com a adição de guerra de guerrilha de Mao Tsé-Tung), as ricas noções sobre sociogenia e terapia do meio de François Tosquelles (e até certo ponto de Jacques Lacan) e, sobretudo, os exemplos inimitáveis de Aimé Césaire (professor de Fanon, mentor e companheiro de luta pela liberdade da Martinica) e Jean-Paul Sartre.
Fanon é, antes de tudo, um revolucionário cuja arte na linguagem, no discurso e na práxis política, nos convidam a resistir e derrubar todas as formas de dogma e dominação que subjugam os povos oprimidos. (Observe sua “oração final” em Peles negras, Máscaras brancas[1952]: “Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questiona!”). Essa intensa energia socrática – alinhada com o que ele chama de “autocrítica africana” – produz um internacionalismo profundo que passa por uma genuína consciência nacional. “Autoconsciência não significa fechar a porta à comunicação. A filosofia nos ensina, ao contrário, que ela é sua garantia. A consciência nacional, que não é nacionalismo, é a única capaz de nos dar uma dimensão internacional… É no coração da consciência nacional que a consciência internacional se estabelece e prospera”. O internacionalismo revolucionário de Fanon – como o de Karl Marx, C. L. R. James, Rosa Luxemburgo, Ella Baker, Albizu Campos, B. R. Ambedkar, Emma Goldman ou seu camarada Ali Shariati – nunca reduziu a riqueza intelectual da história europeia apenas aos cruéis crimes europeus contra a humanidade, especialmente contra os povos do Terceiro Mundo. Ele ainda vai mais longe,
Todos os elementos para uma solução para os grandes problemas da humanidade existiram uma vez ou outra no pensamento europeu. Mas os europeus não atuaram na missão que lhes foi designada…
O Terceiro Mundo deve recomeçar uma nova história do homem que leve em conta não apenas as teses prodigiosas ocasionais sustentadas pela Europa, mas também seus crimes…
Além disso, se queremos responder às expectativas dos europeus, não devemos enviar-lhes um reflexo, ainda que ideal, de sua sociedade e de seu pensamento que periodicamente os adoece.
Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, devemos começar de novo, desenvolver uma nova maneira de pensar e nos esforçar para criar um novo homem.
Para Fanon, o internacionalismo revolucionário – antiimperialista, anticapitalista, anticolonialista, antipatriarcal e antisupremacista branco – produz um novo humanismo que valoriza as necessidades psíquicas, sociais e políticas dos pobres e povos trabalhadores. povos – uma solidariedade e universalidade a partir de baixo.
As mulheres devem ter a mesma importância que os homens… na vida diária, na fábrica, nas escolas e nas assembleias.
Se o governo nacional quer ser nacional, deve governar pelo povo e para o povo, pelos deserdados e para os deserdados. Nenhum líder pode substituir a vontade do povo, e o governo nacional, antes de se preocupar com o prestígio internacional, deve primeiro restaurar a dignidade de todos os cidadãos, prover suas mentes, encher seus olhos de coisas humanas e desenvolver uma paisagem humana para o bem da vida de seus esclarecidos e soberanos.
No entanto, o internacionalismo revolucionário e o novo humanismo de Fanon foram traídos pelas novas burguesias nacionais de todos os cantos do globo. Em seu famoso e ainda altamente relevante capítulo, “As Provações e Tribulações da Consciência Nacional” (um favorito que me lembro em nossas intensas discussões com camaradas do Partido dos Panteras Negras nos anos 60 e 70), ele previu corretamente, a “luta pela democracia contra a opressão do homem emerge gradualmente de uma confusão universalista e neoliberal para chegar, às vezes laboriosamente, a uma demanda por nacionalidade. Mas o despreparo da elite, a falta de vínculos práticos entre eles e as massas, sua apatia e, sim, sua covardia no momento crucial da luta, são a causa de trágicas provações e tribulações”. Em nosso tempo – nosso momento Obama e suas consequências – esse trágico acidente neoliberal tornou-se uma reação fascista neoliberal. O Grande Capital (Big Money) — Wall Street, Vale do Silício e Big Tech (assim como o grande militarismo), filtrado pelo Pentágono e pelo Departamento de Estado — está no banco do motorista. A feia supremacia branca é sua face pública. E o patriarcado, a homofobia e a transfobia correm soltas.
A frase mais conhecida da obra canônica de Fanon é a primeira linha de “Sobre a cultura nacional”: “Cada geração deve descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la, em relativa opacidade”. Que seja dito novamente – com certeza e com firmeza – que as burguesias nacionais dos últimos 60 anos, desde que o livro de Fanon apareceu, de fato traíram sua missão revolucionária. Seu “universalismo neoliberal” não pode mais ocultar e dissimular sua capitulação ao Grande Capital, Grande Militarismo – e centrismo político. Além disso, seus níveis de corrupção, falta de responsabilidade, ganância, narcisismo e repressão daqueles que ameaçam seu poder superaram qualquer transformação fundamental.
O contexto argelino de Fanon levou a suas formulações fascinantes, mas às vezes censuráveis, sobre o potencial revolucionário do lumpemproletariado, do campesinato ou mesmo do efeito catártico da luta armada para os colonizados. No entanto, suas afirmações cruciais sobre a necessidade de fortes mecanismos de responsabilização para os líderes, a necessidade de educação política autocrítica para os cidadãos e as instituições cívicas que atendem a traumas e transtornos mentais são irrefutáveis. Como seu professor, Maurice Merleau-Ponty, Frantz Fanon é um dos poucos grandes intelectuais revolucionários que sempre conectou o psíquico e o político, o existencial e o econômico, o espiritual e o social.
Em nosso momento atual de decadência imperial e decrepitude capitalista (seja nos EUA, China ou Rússia) – incluindo nossa emergência ecológica, crescente neofascismo e xenofobia generalizada (contra muçulmanos, árabes, judeus e povos LGBTQ+) bem como a supremacia branca profunda – o espírito de Fanon é mais manifesto no meu contexto imperialista americano nas alas internacionalistas revolucionárias do movimento Black Lives Matter e do movimento Palestinian Lives Matter alinhado com os esforços de Boicote, Desinvestimento e Sanções. No entanto, a tarefa de descolonização completa e democratização total com opções socialistas genuínas permanece inacabada. Não traiamos nossa missão — assim como Frantz Fanon nunca vendeu sua alma nem traiu sua vocação profética!
Texto traduzido para uso didático. Origial em: https://lithub.com/cornel-west-on-frantz-fanon-one-of-great-revolutionary-intellectuals-of-the-20th-century/
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