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HOSPITALIDADE E GENEROSIDADE DA PESSOA AFRICANA:  entrevista a Ezio Lorenzo Bono sobre o Muntuismo

Nesta entrevista, realizada em 2016 e publicada na revista Capoeira Humanidades e Letras, o professor Ezio Lorenzo Bono fala sobre seu trabalho Muntuísmo, que tem um lugar muito importante na construção das pesquisas sobre a filosofia africana em língua portuguesa (disponível aqui). Confiram!

Marcos Carvalho Lopes

Na contracapa do livro de Ezio Lorenzo Bono Muntuísmo: a ideia de pessoa na filosofia africana contemporanea (Editora Educar: Maputo, 2014. 260 páginas.) uma narrativa que é exemplar em relação ao que que é tema da obra:

Os velhos da terra de Sewe (Inhambane, Moçambique), contam que a 10 de Janeiro de 1498, o famoso navegador português, Vasco da Gama, a caminhos das índias, chegou com as suas embarcações na baía de Inhambane. Era um dia muito chuvoso. Avizinhando-se dos indígenas, perguntou-lhes qual era o nome da localidade. Vendo a forte chuva, estes dirigiram-lhe a palavra com um sorriso nos lábios: “Bela nyumbani” (“entre em casa”) e o ofereceram-lhes hospitalidade e produtos locais. Impressionado por tanta hospitalidade, Vasco da Gama escreveu no seu diário que naquele dia havia entrado na bela terra de “Inhambane”, terra de boa gente. De facto, havia interpretado as palavras dos indígenas como resposta à sua pergunta. Ainda hoje, a terra de Sewe é chamada “Inhambane”, “Terra da boa gente”. Esta história real, embora revestida de lenda, resume perfeitamente a natureza da pessoa africana: hospitaleira, aberta aos outros e generosa. Esta figura é um emblema não só da gente desta terra de Inhambane e de Moçambique, mas da África inteira. Se quiséssemos perguntar idealmente aos africanos qual é a sua ideia de pessoa, com um sorriso nos lábios, responderiam-nos ainda hoje com estas duas palavras, que valem muito mais do que inteiros tratados filosóficos sobre a pessoa: “Bela nyumbani !”.(BONO, 2014, 226-227)

É possível tomar essa narrativa, que no livro aparece como uma nota de pé de página, como um exemplo do que é a ideia de “muntu”[1], a noção tradicional africana de pessoa, que o tema de investigação de Ezio Lorenzo Bono. O autor é italiano, sacerdote católico, já trabalhou e estudou no Brasil e atualmente é professor de Filosofia contemporânea e africana, e de Filosofia da Educação na Universidade Pedagógica-Maxixe/UniSaF (Moçambique); também nesta instituição ocupa a direção dos cursos de pós-graduação (Mestrado e Doutorado). Este trabalho, que foi originalmente sua tese de doutoramento em Ciências Pedagógicas pela Università degli Studi di Bergamo, defendida em 2011.

Ezio Lorenzo Bono desenvolve no primeiro capítulo de Muntuísmo uma verdadeira história da filosofia africana, tomando como centro a noção de muntu. Aborda neste capítulo tanto autores clássicos, como Placide Tempels, Alexis Kagame, John Mbiti; quanto nomes mais recentes como Kwame Gyekye e Fabien Eboussi Boulaga e as perspectivas lusófonas, do bissau-guinense Filomeno Lopes e dos filósofos moçambicanos Severino Ngoenha e José Castiano.  Nesta trajetória, o autor mostra as primeiras descrições da noção de muntu como um conceito filosófico, sua problematização (com as críticas que repercutem a desvalorização da etnofilosofia)  e reabilitação nas abordagens contemporáneas. É certamente um recorte, que segue uma orientação temática e deixa de lado autores importantes, mas, justamente por seu foco e especificidade, se justifica como passo investigativo e propedéutico. Num segundo momento, o autor vai a campo e aplica a abordagem da filosofia da sagacidade para desvelar como os sábios da região de Inhambane, dos povos Vatonga, Vathswa e Vacopi, compreendem a noção de muntu. Por fim, o autor retoma e problematiza criticamente o seu percurso, propondo uma redescrição da noção de pessoa africana através do aforismo “I am because I believe and I love” (“Eu sou porque acredito e amo”), em detrimento dos tradicionais lemas de Mbiti, “Eu sou porque nós somos e como somos, logo existo” ou o ditado zuluUma pessoa é uma pessoa através de outra pessoa” (“Umuntu ngumuntu mgabantu”). A justificativa é de não somente destacar a relação horizontal e comunitária, em que a confiança e solidariedade marcam a pessoa africana; mas também a relação vertical, da fé como característica ontológica do ser africano, que mantém sua ligação com Deus e a Ancestralidade.

Nesta breve entrevista, concedida via email pelo autor, que atualmente está na Itália realizando os seus estudos de pós-doutoramento, o professor Ezio Lorenzo Bono nos fala de seus primeiros contatos com a filosofia africana, negrita a importancia de filósofos lusófonos e nos ensina um pouco mais sobre sua proposta de Muntuísmo. O livro Muntuísmo, que logo teve seus exemplares esgotados, acaba de ganhar uma segunda edição, desta vez pelas Edições Paulinas. A esperança por aqui é de que, nesta nova casa editorial, a distribuição da obra alcance com mais facilidade o Brasil, já que o trabalho é, sem dúvidas, uma boa abertura para começar o diálogo com a filosofia africana.  

1) Como o Senhor iniciou seu contato com a filosofia africana?

O meu primeiro contacto com a Filosofia africana aconteceu acerca de 20 anos atrás, quando participei em Verona (Itália) de um curso de preparação para os missionários que iam trabalhar na África. Entre os vários docentes filósofos, antropólogos e teólogos, tivemos uma série de palestras com Filomeno Lópes, o qual nos deu uma introdução à Filosofia Africana.  Quando cheguei em Moçambique, fui frequentar um curso de Licenciatura em Filosofia na Universidade Pedagógica de Maputo, onde tive como docentes os professores   Severino Ngoenha e José Castiano, e algumas palestras com Elísio Macamo. Alguns anos depois fiz a minha tese de doutoramento sobre a filosofia africana contemporânea na Itália, tendo como cossupervisores a Prof.a Doutora Lidia Procesi (uma das maiores peritas em filosofia africana) e o Prof. Doutor Severino Ngoenha.

2) A revista Philosophia Africana (Volume 17, Issue 1, Fall 2015) no ano passado dedicou um de seus números à filosofia na Africa Lusófona.  Não por acaso todo o foco ficou em Moçambique, com destaque para Severino Ngoenha, textos de José Castiano e Elisio Macamo. Na sua obra Muntuísmo o senhor toma o cuidado de tratar da África lusófona, incluindo a obra do filósofo bissau-guinense Filomeno Lopes. Como você avalia a contribuição e especificidade desta perspectiva lusófona dentro da filosofia africana?

No panorama da filosofia africana, o espaço maior, como notório, é ocupado pelos filósofos anglófonos e francófonos já muito conhecidos.  Por isso no meu estudo sobre a filosofia africana, quis dedicar uma atenção especial aos filósofos lusófonos, menos conhecidos a nível internacional em relação aos colegas anglófonos e francófonos, mas igualmente importantes.   Cada um deles tem uma especificidade e contribuem, a meu modo de ver, de maneira original no debate da Filosofia africana.

Severino Ngoenha, filosofo da história, depois da  crítica radical (ou crítica da crítica) contra os críticos da etnofilosofia, que  concentraram toda a atenção  do debate africano no passado, apela para uma reflexão aberta ao futuro e  para uma filosofia transformadora da sociedade (paradigma libertário).

José Paolino Castiano, epistemólogo, depois da superação da colonização conceptual, em busca de novas racionalidades que incluem também os saberes locais, vê na “filosofia da sagacidade” (Sage Philosophy) e na ideia da “intersubjectivação” o caminho mais promissor para a filosofia africana (paradigma epistémico).

Elísio Macamo, sociólogo e antropólogo, busca a identidade do africano (e moçambicano) através do estudo crítico das tradições (paradigma identitário) e com leituras críticas sobre a situação política actual de Moçambique.

E por fim, Filomeno Lopes, filósofo da comunicação, vê na “comunicação interperiferica” (entre os filósofos dos países do terceiro mundo) e na “espiritualidade comunicativa” (entre todos os homens do mundo) a via para a reconciliação e a paz nos países africanos e do mundo inteiro (paradigma comunicativo).

3) A descrição que faz de um personalismo africano, com a proposta do muntuísmo, é uma contribuição que não se encaixa muito bem nas divisões tradicionais da filosofia africana (etnofilosofia, filosofia da sagacidade, filosofias nacionalistas-ideológicas e filosofia profissional). Desviando-se da perspectiva nacionalista-ideológica o seu trabalho parece incorporar as demais frentes de interrogação, o que mostra uma crise dessa tradicional “taxonomia”. Como você dividiria as correntes da filosofia africana?

Como sabemos cada classificação é arbitrária e limitada.   Eu, sendo um docente de Filosofia africana, por motivos didáticos/pedagógicos, costumo agrupar os filósofos africanos em duas grandes correntes.  Uma primeira corrente, que tem interesses mais ligados à cultura e a epistemologia; e uma segunda corrente, com interesses mais ligados à história e à política. Só para sugerir alguns nomes importantes, na primeira corrente podemos agrupar os “etno-filósofos” (Tempels, Kagame, Mulago, Mbiti etc.), os críticos da etnofilosofia e os filósofos que mais se ocuparam da cultura local e da reabilitação da tradição (Houtondji,  Towa, Wiredu, Mudimbe, Eboussi Boulaga, Castiano, Oruka etc.). Na segunda corrente podemos incluir os filósofos “práticos” interessados na filosofia como força transformadora da sociedade e os “intelectuais orgânicos” ligados aos temas da libertação (Ela, Mveng, Lopes, Ngoenha,Tutu, Biko etc.). Se por libertação entendemos não somente libertação política mas também cultural (decolonização conceptual), então nesta corrente devemos incluir alguns nomes transversais que aparecem também na primeira corrente, como Wiredu, Eboussi Boulaga e Castiano.

O Muntuismo, sendo uma filosofia nova que está a formar a sua escola de pensamento na Universidade Pedagógica de Maxixe, se coloca em modo transversal entre as duas correntes acima indicadas, porque se de um lado o seu interesse é a valorização da cultura tradicional a ser legitimada cientificamente (paradigma epistémico), do outro lado visa a libertação da pessoa africana dos constrangimentos e sufocos provenientesnão somente da influencias exteriores, mas também da sua  cultura (“não se deve confundir as máscaras com os rostos”).

4) A proposta de substituição dos lemas de John Mbiti “Eu sou porque nós somos e como somos, logo existo” ou o tradicional ditado zulu “Uma pessoa é uma pessoa através de outra pessoa” (“Umuntu ngumuntu mgabantu”) para descrever a pessoa africana, pela afirmação de que “Eu sou porque eu acredito e eu amo” recoloca e problematiza a relação entre o euroindividualismo e o comunitarismo africano.  Como fica neste contexto a “crítica unanimista” e a questão da contingência e transformação histórica das identidades e comunidades?

Os aforismos clássicos da Filosofia Africana (“I am because We are; and since We are, therefore I am” e “Umuntu ngumuntu ngabantu”) já contém em si uma parte da verdade do homem (a relação com os outros), e marcam um passo a frente em relação ao princípio cartesiano (“Cogito ergo sum”) que só afirma a existência do homem mas não diz nada sobre a verdade desta existência. Tais aforismos africanos, porém, se limitam a indicar somente uma parte da verdade do homem africano (a dimensão horizontal), esquecendo a segunda parte que é a relação com o Outro (a dimensão vertical) entendido como Deus e como os Antepassados. O Muntu não é uma pessoa somente junto com as outras pessoas, mas também junto com Deus e os Antepassados. Esta dimensão transcendental marca ontologicamente a pessoa africana, sem a qual o Muntu não seria Muntu (Cfr. Mbiti), mas somente um “Muntu por metade”.

Por Muntu se entende a pessoa e não o seu contrário que é o indivíduo. O personalismo africano (que definimos com o neologismo Muntuismo) luta contra o individualismo: o indivíduo é autorreferencial e pode subsistir sozinho, sem precisar de nada e de ninguém; a pessoa ao contrário, é “heterorreferencial”, ou seja, não pode subsistir sem a abertura aos outros e ao Outro. Portanto confundir personalismo com individualismo significa não ter entendido nada do Muntuismo. O Muntuismo se põe absolutamente em contraste não só ao euroindividualismo, mas a todo individualismo de qualquer parte do mundo. 

5) Os professores Jean e John Comaroff[2] defendem que os países centrais precisam evoluir em direção à África. O senhor concorda com essa proposta de desenvolvimento? 

Eu não sei o que estes professores defendem exactamente porque, infelizmente, não li a suas propostas. O que eu acho é que devemos considerar a Africa um continente de igual dignidade com os outros continentes, sem cair nos extremos do negativismo total (o afro-pessimismo) nem da exaltação eufórica que idealiza a Africa come a ilha exótica e feliz (mito do bom selvagem). A África é um continente que, como os outros, está em busca do seu caminho e anseia ao próprio progresso, apesar dos inúmeros problemas que o apoquenta. 

O que a África pode transmitir ao resto do mundo são os seus valores que por milênios guiaram os seus povos até aos nossos dias e os sustentaram nos momentos trágicos da sua história (escravidão, o tráfico dos negros, a colonização etc.). São os valores da hospitalidade, a solidariedade, o amor aos irmãos, a fé em Deus e nos antepassados. Sem estes valores o homem seria somente um indivíduo, mas nunca pessoa.


[1] Nei Lopes, na Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (4ª ed. São Paulo: Selo Negro, 2011), define muntu como “um termo multilinguístico banto cujo significado é “ser humano” (mu-ntu, plural bantu), e, na acepção filosófica, “a força dotada de vontade e inteligência”. O pensamento africano em geral percebe o ser humano como força em atividade, integrada em um conjunto de forças que corresponde ao universo”.  (LOPES, 2011, p.474)

[2] “A ideia de pessoa autônoma, de individuo livre, é uma invenção europeia?”. Essa pergunta provocativa foi feita por docentes da Universidade de Heidelberg na Alemanha ao casal sul-africano de antropólogos Jean e John Comaroff. Implícita na questão esta a perpetuação de formas de discurso que caracterizam os não-europeus como carentes, décift civilizatório enunciado como sentença de destinação trágica. Ora, sem seguir o lugar comum de rejeição e denuncia do eurocentrismo, o casal Comaroff ( Teoría desde el Sur. O cómo los países centrales evolucionan hacia África.  Buenos Aires: Siglo Veintiuno editores,2013) defende uma redescrição da questão, problematizando a ideia de autonomia e liberdade e propondo um novo destino: os países centrais precisam evoluir em direção à África. Nessa redescrição os Comaroff se desviam da reprodução da ideia de que na sociedade africana haveria o privilégio da comunidade sobre a individualidade: “a antinomia entre o euroindividualismo e o comunitarismo africano passado e presente é profundamente enganosa” (p.105). Infelizmente, como não esclareci os termos da questão e a relação com os Camaroff, o professor Bono tem toda a razão em reclamar da má formulação da pergunta. De todo modo, a resposta tem mais cortesia e clareza do que a questão formulada.

Entrevista publicada origianalmente em:

LOPES, Marcos Carvalho. Hospitalidade e generosidade da pessoa africana: entrevista a
Ezio Lorenzo Bono sobre o Muntuismo. Capoeira-Humanidades e Letras, 2016, 2.1: 65-71.

Marcos Carvalho Lopes

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