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Ideologia III – Ideologia, verdade e filosofia

A filosofia é uma necessidade nacional. Ou seja, uma nação tem necessidade, assim como de música, de arte, de literatura, de filosofia

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS

A verdade, como a filosofia, é filha de sua época. Mas o que isso significa? Que uma e outra são frutos do tempo, que elas nascem dentro de determinadas circunstâncias e que, igualmente, valem para determinados contextos, isto é, para determinados tempos e lugares. “Mas as verdades da filosofia são universais e eternas”, alguém poderia dizer. O certo é que não são nem uma coisa nem outra. As pessoas pensam, erroneamente, que existe “a” filosofia com um número determinado de verdades. Já tenho escrito sobre isso em várias ocasiões mostrando que isso é insustentável. Uma prova simples é olhar esta pretensa verdade “universal”: “Uns nascem para mandar e outros para obedecer”. Se essa tese é verdadeira, então a que segue é falsa: “Todos nascem iguais”. O fato de alguns leitores acreditarem na segunda e outros na primeira prova conclusivamente que, mesmo podendo ser uma dessas afirmações verdadeira, não é universal. Isto é, não recebe assentimento universal. Sendo assim, nenhuma dessas afirmações é universal. As duas teses são de filósofos importantes, mas uma deve ser falsa já que nega o que a outra afirma. É provável que a primeira afirmação, de Aristóteles, tenha sido muito bem recebida como a explicação da desigualdade entre os gregos da época. Muito bem recebida na medida em que justificava a existência de escravos e homens livres. Aristóteles teria chegado à natureza das coisas. Uma natureza muito bem escondida porque, pela aparência dos homens, livres e escravos eram idênticos. Mesmo tendo sido muito bem recebida, nem todo mundo, já naquela época, acreditava nela.

Assim, aquilo que bem poderia muito bem ser descrito como justificativa metafísica naquela época seria, hoje, adjetivado de “ideológico”. O metafísico de ontem seria, assim, o ideológico de hoje. O “evidentemente verdadeiro” de outrora transforma-se no “obviamente falso” de nossos dias. Assim, fica mais claro em que sentido o verdadeiro e o falso são filhos de sua época. Poderia-se imaginar que dificilmente os gregos da época de Aristóteles teriam concordado com aquilo de uns nascerem para mandar e outros para obedecer. Mas hoje mesmo vemos exemplos disso: quantos que conhecemos não acreditam piamente que as mulheres nasceram para obedecer os homens? Não deviam as mulheres, faz pouco tempo (ou mesmo hoje), jurar nas cerimônias religiosas que deviam obediência aos seus maridos? Isso pressupõe uma relação de submissão de ela para com ele.

Somos, então, sutilmente levados a aceitar certas coisas que mais cedo ou mais tarde se mostram passíveis de muitas críticas. Mas que nos leva a aceitar tais coisas? Numa palavra: a tradição. Por que as mulheres que foram ordenadas sacerdotes serão excomungadas pela igreja católica? Será que não têm a mesma dignidade como pessoas que os homens? Por que a mulher era obrigada a usar véu dentro de uma igreja? Talvez porque não era considerada suficientemente digna para entrar na casa de Deus com o rosto descoberto? Não sei ao certo e gostaria mesmo de saber. Mas alguma explicação deve haver para que as mulheres ocupem um segundo plano na igreja católica — não podem ser sacerdotes, menos ainda ser bispos, arcebispos, cardeais e, nem sonhar, papas! Por quê? As explicações, que poderiam parecer justíssimas para alguns, só farão sentido dentro da tradição católica. Que a mulher não seja igual ao homem, que não possa exercer os cargos que o homem ocupa nem ter os privilégios dele só pode ser verdadeiro para quem partilha dos princípios de uma determinada tradição pois, fora dela, nada há que nos permita concluir que as mulheres, enquanto pessoas, não sejam iguais aos homens.

O que, por outro lado, permite que duvidemos dos dogmas impostos pela tradição? Os próprios fatos que os contradizem — além das mudanças de novas formas de vida. É a realidade mesma que nos leva a duvidar das verdades que desde crianças nos obrigavam a acreditar como inquestionáveis. As mudanças das coisas, mais tarde ou mais cedo, forçam-nos a questionar nossas crenças. Abandonamos certas “verdades” porque deixamos para trás os valores que as sustentam. E o fazemos motivados por tudo aquilo que acontece em nosso redor. Ocorre aqui uma interação entre fatos, valores e interesses.

Alguns interesses devem ter levado a igreja católica a, por exemplo, proibir o casamento dos padres e a exigir que sejam celibatários. O valor do celibato deve estar estreitamente ligado a algum interesse institucional — os bens da igreja, por exemplo.

As verdades defendidas institucionalmente, veja-se, não independem de valores e interesses. Por isso, aqueles que criticam tais “verdades” estão questionando os valores que as sustentam e, naturalmente, os interesses que as motivam. É essa a razão por que muitas disputas aparentemente teóricas não sejam outra coisa que a expressão de conflitos de interesses.

Mas não podemos deixar de ter interesses e os valores ligados a eles. Em algum sentido, tais interesses e valores nos obrigarão a ver as coisas de um jeito e a defender pontos de vista determinados. Tais pontos de vista são a expressão do que consideramos ser verdadeiro a partir da análise que, por sua vez, é condicionada pela perspectiva que temos das coisas. E essa perspectiva é uma mistura de expectativas, temores, planos, projetos, do que queremos e não queremos etc. A análise de um determinado problema não pode, portanto, estar intimamente relacionada com o tipo de realidade que nos rodeia e o tipo de realidade que queremos e não queremos.

E o que tem tudo isso a ver com filosofia? O começo do filosofar, aqui como em qualquer lugar, ocorre quando alguém, o pensador, a pensadora, discute e analisa publicamente seus problemas, expondo argumentativamente seus pontos de vista e suas soluções. É isso que é fazer filosofia e foi o que fizeram os filósofos que tanto admiramos, como Platão e Aristóteles: inseridos na sua realidade, foram levados à análise dos problemas do seu tempo e propuseram publicamente suas soluções. A filosofia é uma necessidade nacional. Ou seja, uma nação tem necessidade, assim como de música, de arte, de literatura, de filosofia. A filosofia acadêmica não terá receptividade nos cidadãos de uma nação, como ocorre, por exemplo, na Europa ou nos Estados Unidos, e ocorre com a literatura e música brasileiras no Brasil, enquanto ela, de alguma maneira, não responda aos anseios teóricos dessa nação, enquanto o povo não se reconheça como sendo o motivo e o objeto dessa reflexão, enquanto não seja, como na literatura, no cinema, na música brasileiros, co-partícipe de sua criação. É preciso pensar filosoficamente de uma perspectiva própria como os gregos fizeram a milhares de anos e os europeus e norte-americanos fazem hoje. O universal procede do particular. É como na literatura ou na pintura, quanto mais local, particular e próprio, mais universal e público. Necessitamos estimular o estudante a pensar por si só e deixá-lo arriscar seus vôos. É isso que as novas gerações de estudantes de filosofia estão começando a perceber e a exigir cada vez com maior insistência pelo Brasil afora. A filosofia feita no Brasil é, cada vez mais, só uma questão de tempo — porque capacidade o Brasil tem de sobra.

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo, é professor da UFG.


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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