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Justiça Ujaama como estética da existência

Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

Na sua primeira aparição pública depois do início do julgamento das dívidas (não mais) ocultas,  o juiz Efigênio Baptista foi hosanado messiânicamente, no sentido  soteriológico do termo, como um pop star. A sua exaltação pelo nosso passivo  (e não pacífico) povo não se devia à sua beleza, juventude ou corte de cabelo – apesar de  ter-se  tornado, à maneira de Andy Warhol,   num ícone da pop art, em certos salões e/ou representações teatrais – mas à identificação  popular do  acto de julgar de que ele estava investido, com a reposição da justiça. Volvidas  algumas semanas, o mesmo juiz voltou a público mas desta vez os ramos de oliveira não se ergueram, nem se ouviram os aves dos morituri a saudar o ex-novo César. Não é uma coincidência que este início de refracção ou pelo menos suspeita de alinhamento do juiz com uma nomenclatura não juridiciável, apareça imediatamente depois  de ele ter sentenciado, apodíticamente, que Nyusi, Guebuza e Mondlane  não fariam parte  do processo, porque o rastreio das suas contas não tinha  evidenciado nenhum traço do dinheiro das dívidas ocultas. 

Da parte do povo não tinha havido nenhuma reação particular perante a escolha do código de 1929 – visivelmente passado mas não ultrapassado –, apenas alguns sussurros  de desaprovação  à permissividade do juiz perante a manifesta má educação e arrogância de alguns réus, e  compreensão – apesar da contestação da ordem dos advogados – da pletórica  excomunhão do herético Chivale, culpado – aos olhos dos cânones da procuradora – do pecado do conflito de interesses e, talvez, para  o juiz, de cumplicidade no calote.

O mesmo Salomão,o grande juiz vetero-testamentário, aplaudido dias antes como imaculado defensor do justo, tinha perdido o favor  da vox popoli,  não pela sua ciceriana fidelidade aos canonis  jus,  mas porque o seu legalismo e a sua casuística, parecendo encobrir, em nome de provas, certas eminências grisas,  aparecia – ou se revelava – cúmplice e, por isso mesmo, contrário à busca da Justiça que atormenta os moçambicanos. Este desconforto evidencia, in primis, a sabedoria (bom senso) do povo (que até Maquiavel reconhecia) mas também a discrepância, cientificamente reconhecida (Norbert Rouland, Antropologia Jurídica), entre o legal (cujos procedimentos e leis resultam estranhos ao ethos das pessoas) e o justo, de um direito deslocado em relação ao nosso viver-em-comum.

Ndambi Guebuza pode reivindicar, como filho do ex-presidente, o direito legal de viajar (e fazer negociatas) à custa do erário público; Nhangumele, por sua vez, poderá invocar o facto de ter feito, como lobista, simplesmente o seu trabalho. Legalmente talvez  não haja nada que os  possa incriminar mas, se o objectivo último do direito é a vida em sociedade, é aceitável e justo,  que perante a pobreza ambiente, um indivíduo, porque filho de um suposto servidor público (presidente),  se permita ou se dê luxos  de uma star de Hollywood quando os seus concidadãos – que pagam os impostos – sucumbem na miséria? É aceitável e justo que  um lobista (cujo mérito é saber, xiconhocamente, se infiltrar nos permeáveis corredores do poder) ganhe somas que distritos inteiros – habitados por muitos milhares de pessoas – não têm durante décadas? Pertencemos todos à mesma comunidade? As novas “realezas” e os seus “príncipes” sacrificam, no altar do individualismo, os valores da Igualdade e Fraternidade que a Revolução Francesa, in illo tempore, tinha concomitantemente proclamado com a Liberdade. 

Tudo o que é permitido pela lei é legal, e só são ilegais as acções contrárias ao direito existente e estabelecido. É fácil, num primeiro tempo,  identificar o ilegal e o injusto. Porém, esta identificação é problemática e levanta problemas (Ronald Dworkin). É legal, por exemplo, que Moçambique  pague as dívidas ocultas, porque assim foi decidido pelo parlamento, sabendo que isso foi obra de changues e nhangumeles  (em conluio com máfias estrangeiras) para seu próprio benefício? Essa legalidade é justa, é conforme ao ideal do direito? A universalidade supõe a igualdade dos indivíduos diante da lei, pressuposto fundamental para a justiça. É uma verdade à la palisse que alguns super cidadãos, são claramente “mais iguais do que outros” perante a lei. Aliás esta desigualdade está escrita nos próprios textos legais, que aplica um tratamento de favor para alguns, pela simples base de serem filhos de quem são ou porque supostamente servem, exercendo uma função política. O exemplo disso são as imunidades:  do presidente, dos parlamentares ou da necessidade de passar pelo conselho do estado para ouvir o ex- presidente, o que levanta questões no interior mesmo da democracia representativa.  Isto falsifica também a política, porque alguns – ojms, omms,  mdms, renamos, sociedades civis e outras holdings – entram a fazer política, não porque têm algum interesse pela coisa pública, mas pelos privilégios que a política e a pertença ao parlamento, por exemplo, lhes confere. A política tende, nesse sentido, a atirar os piores changues (caracteres), áqueles, cujos fins – como o Maquiavel do Príncipe – justificavam os meios. No caso do processo – e estratégias demagógicas – em curso, isto põem-nos diante de um dilema disjuntivo perigoso: a imunidade (e os privilégios da função) – do cidadão Nyusi enquanto for presidente da República, e o perigo de ser constituído arguido, quando e se, cessasse as funções magestáticas, pode alimentar tentações, humanamente compreensíveis, de se perpetuar, defensivamente, no poder.

Uma lei pode ser injusta segundo dois critérios: a sua concepção ou a sua aplicação. Quando uma lei é injusta na sua concepção, isso põe em causa o poder legislativo que promulga as leis; quando os deputados, em unanimidade, votam para eles próprios, salários exorbitantes, mordomias, carros de luxo, privilégios excessivos num país que nada num mar de miséria; nesse caso, o direito favorece abertamente um grupo social (parlamentares) em relação aos demais cidadãos, e a justiça torna-se um flatus vocis. Uma lei justa cuja aplicação é injusta, põe em causa quer o poder judiciário – em relação ao desenrolamento do processo  e à ulterior proclamação da sentença – quer o poder executivo – em relação ao  desenrolamento da investigação e no estabelecimento e aplicação da pena determinada pela sentença.  Rastrear simplesmente os vestígios convenientes do dinheiro e ignorar provas claras – que até provêm de outros tribunais como o de Nova York ou o de Londres – da implicação dos que eram política e moralmente mais responsáveis, vicia e anula o valor catártico do processo e a confiança do povo nas suas instituições, as do governo como as da justiça.

As injustiças podem relevar da corrupção de leões, rosários ou outros moçacanistas quaisquer, de uma instituição ou do sistema, o que não apela ao mesmo tipo de resposta da parte dos cidadãos. Se só os Nhangumeles desta, ou de qualquer outra vida, ou uma gang de trapaceiros, infiltrados na segurança do Estado,  favorece(m) ou promove(m) falcatruas, os critérios de justiça publicamente aceites não estão em causa. Mas se a corrupção se torna sistémica e a gatunice e injustiça vira regra do funcionamento do Estado, então o cidadão não pode apelar a nenhuma autoridade para obter justiça e, por isso mesmo, legitima formas violentas de reivindicação da justiça, ou até revoluções e/ou mudanças de sistema.

O changanismo, como o conhecemos hoje, é um sistema que capturou o Estado (Mosca) do interior. Ele não compreende só os Nhangumelos desta vida mas é pilotado por super homens – que estão para além do bem e do mal (Nietzsche) – que não controlam só os sistemas paralelos mas também os diferentes poderes do estado: o Parlamento para votar a favor dos seus interesses, o judiciário para não agir ou para agir de maneira tendenciosa e desvirtuar a justiça. É em nome desta distinção, entre a injustiça dos ‘quaisquer’ e a injustiça sistémica que Rawls estima que a injustiça de uma lei não é uma razão suficiente para não lhe obedecer, mas  que é necessário julgar o sistema.

O que interessa ao filósofo, quando pensa no direito, não é a sua dimensão reguladora, mas os seus fundamentos e a  legitimidade das leis que produz. Quando fazemos regras, não fazemos nada mais, nada menos que criar os pressupostos que fazem com que todos possamos ter, no campo dos possíveis, as mesmas oportunidades, e no campo dos deveres, as mesmas obrigações. O essencial da Justiça não é a aplicação de regras, não é manter os leões, ndambis e rosários nas cadeias (que depois temos de sustentar); não é só expulsar os promíscuos chivales dos tribunais ou proteger os intocáveis chefes dos ‘comandos conjuntos’ e ‘operativos’. O essencial do filosófico logos – do verbo grego legen, juntar –da Justiça é recozer as relações, restabelecer consensos, pegar em fios (grupos, tendências, fações) separados para tecer e fazer comunia (comunidade); converter os chitanes  (metanóia), para que em vez de criar divisões e conflitos sejam transformados, harmonizados e participem a fazer Ujaama.  Se a Justiça caiu no descrédito e o julgamento da BO aparece como a segunda grande telenovela moçambicana, digna de Netflix, não é, in primis,  o judiciário que está em causa, apesar dos seus muitos pecados (nem todos veniais). O que está em descrédito é o “chivalismo” sistémico da promiscuidade. em que os supostos garantes da Lei – a partir dos escalões mais elevados do Estado – são os mentores e fautores das transgressões e manipulações da lei. É o chivalismo promíscuo dos governantes que viola as regras do Estado de Direito, falsifica as regras do viver-em-comum,   e põe em perigo um futuro consensual e de paz.

 A vida em comum exige um mínimo de consenso axiológico, em volta de um certo número de valores partilhados e sobre a necessidade de instituições, que permitam a criação de leis  e têm capacidade de as fazer respeitar, o que permite dar corpo à vida colectiva. Cícero falava da “convenientia consensuque naturae”, Habermas  sublinhava o“consentir como forma de pensar juntos” e Bidima, na “Palabre”, afirma a primazia do consenso sobre a competição política.   Sem consenso nas leis que regem o viver em comum e nas instituições que fazem as leis, soçobramos no conflito. 

Senhores Juízes, senhores Procuradores, senhores Deputados, senhores Ministros: consenso não é  obediência a uma doutrina, a uma verdade ou a um partido, mas abertura a uma possível participação de todos na elaboração de um pensamento partilhado sem o qual não há comunidade. 

O Direito em acto na BO, esmera-se em tentar separar  as águas, o trigo do joio, o bem do mal. Este ‘juridismo’ fica aquém do telos filosófico da justiça. Repetita iuvant, e sem sexismo, a justiça pode ser representada por uma mulher. Não as minervas ou marianas que cortam, dividem, separam; mas uma costureira que pega em fios dispersos e com muita paciência e tenacidade junta-os, coze-os para criar um tecido – social – comum. Quanto mais fio usamos, mais sólido é o tecido e melhor nos ajuda a aguentar as metamorfoses sociais (guerras, terrorismo e dívidas ocultas)  e as intempéries dos tempos (Idais e Kenneths). Quanto mais diversidades – de cores, de religiões, de credos – mais o embelezamos. 

As bem-aventuranças políticas residem na capacidade de militar contra o chivale-chivalismo (versão extremada do “Javali / Javalismo”); ousar a tolerância, o diálogo e a cordialidade de construir o comum com os outros, todos os outros, para além das pertenças políticas, raciais ou de credos; é nisto  que consiste a costura (Justiça), a estética (Ujaama) política da existência de uma nação.



Severino Ngoenha, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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