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Kant e a refutação da metafísica clássica

Poucos filósofos têm consciência do caráter revolucionário  de sua obra

Gonçalo Armijos Palácios*

            Os filósofos modernos continuam um processo que começa no final da época medieval e que estava dirigido a minar nossa confiança numa razão absoluta transcendente. A necessidade de olhar a natureza e o homem trouxe novos impulsos à tarefa filosófica e modificou radicalmente o que se entendia por conhecimento, ciência e filosofia.

            O início da época moderna vê nascer as ciências naturais como hoje as conhecemos, o que levou à procura de uma base de sustentação diferente do que se entendia por conhecimento. Foi isso que se buscou já desde o final do medievo, na Renascença e no início da modernidade, com pensadores como Ockham, Bacon e Descartes, respectivamente. Mas foi a obra de Kant que parece culminar esse processo de fundamentação do conhecimento científico.

            Uma das perguntas que levam a esse resultado é esta (Kant está falando sobre a matemática e a física):

Ora, visto que estas ciências são realmente dadas, convém perguntar como são possíveis, pois que elas devem ser possíveis é provado pela sua realidade. Relativamente à Metafísica, o seu mísero progresso até aqui, e o fato de não se poder dizer, com respeito a nenhum dos sistemas até hoje expostos, que ela exista realmente no que concerne ao seu fim essencial, dão a cada um razões para duvidar de sua possibilidade.[1]

Podia-se dizer, portanto, que a metafísica existia como ciência ou como conhecimento confiável? Kant levanta decisivas dúvidas a esse respeito. Tão decisivas, aliás, que o que se conhecia com o nome de “metafísica”, até Kant, nunca mais foi considerado digno de interesse filosófico depois da publicação da Crítica da Razão Pura. Nela, Kant deixa claro qual é sua posição sobre os erros e as limitações da tradição, assim como sobre o caráter revolucionário do seu próprio trabalho. Como vimos, ali se afirma o estado lamentável da metafísica, que, para o filósofo, nunca avançou um passo.

Numa obra posterior, concebida para esclarecer os mal-entendidos provocados pela Crítica, nos Prolegômenos a Toda Metafísica do Futuro, o pensador de Königsberg faz considerações importantes sobre a filosofia, em geral, e sobre o peso negativo da tradição, em particular. Tradição que impede, para Kant, que sejam feitos progressos. Por isso afirma nas primeiras linhas dessa obra:

Estes Prolegômenos não são para serem utilizados por aprendizes, mas por futuros mestres e a estes devem servir, não para ordenar a exposição de uma ciência já existente, mas para, antes de mais nada, inventarem eles mesmos esta ciência.” (p. 101)

Os aprendizes precisam de textos que, como se costuma dizer, servem para repassar conhecimentos já adquiridos. Servem para informar as novas gerações das contribuições do passado, mas, ao mesmo tempo, podem representar o meio pelo qual se disseminam e mantêm os erros desse mesmo passado. Por isso Kant adverte que o seu texto não é para isso nem está voltado para o passado. Ele, como a Crítica, foi escrito para que uma ciência seja inventada.

            A seguir, Kant decide atacar aqueles que confundem erudição com sabedoria. Aqueles que gostam de repetir passagens inteiras de livros consagrados e sabem citar de cor até o número da página em que certos trechos se encontram. São eles — é o que se depreende do texto de Kant — os responsáveis pela consagração e manutenção dos erros do passado. Diz o filósofo:

Há eruditos para os quais a história da filosofia (tanto da antiga como da moderna) é a sua própria filosofia; os presentes Prolegômenos não foram escritos para eles. Eles devem esperar até que aqueles, que estão empenhados em sorver das fontes da razão, tenham levado a cabo sua tarefa: só então terá chegado a sua vez de dar a conhecer ao mundo o seu trabalho.” (p. 101)

Sem dúvida, um trecho que mostra o que pensava Kant dos acadêmicos de sua época, daqueles que não contribuem para a filosofia e se contentam com o que já foi dito e feito. Atitude que impede o aparecimento do novo e o avanço do pensamento. É ali que está a diferença entre o “repassador” de conhecimentos e o produtor de saber. “Repassador” que não vê com bons olhos o aparecimento do novo nem ousa pensar por si. Sobre os mesmos eruditos, Kant continua esse trecho assim:

Na opinião deles, entretanto, nada que já não tenha sido dito pode vir a sê-lo, o que de fato pode servir para uma segura previsão do futuro, pois, tendo o conhecimento humano divagado durante séculos de tal maneira sobre inumeráveis assuntos, não deve ser difícil encontrar para cada obra nova uma antiga, que tenha algumas semelhanças com ela.” (Loc. cit.)

Muitos, de fato, pensam que a filosofia é o processo de reiteração dos mesmos assuntos, que todos os filósofos falam sobre o mesmo e que concordam entre si. Nada mais afastado do desenrolar de contradições e rupturas que é a história da filosofia. É isso contra o que Kant luta. Pois não é fácil, para os eruditos, aceitar o que venha a contrariar suas antigas opiniões e sua cômoda certeza.

            Tanto a Crítica da Razão Pura quanto os Prolegômenos denunciam como impossível a finalidade da metafísica — que quer conhecer o ser na sua essência — e mesmo a existência dessa “pretensa ciência” no seu sentido clássico. O que equivale a dizer, por exemplo, que tudo o que lemos naquela obra de Aristóteles — depois batizada como Metafísica — não tem valor. Perceba-se a tarefa temerária que Kant se propunha:

Minha intenção é a de convencer a todos aqueles que consideram valer a pena ocupar-se com a metafísica: é absolutamente necessário abandonar por enquanto seu trabalho, considerar tudo o que já aconteceu até agora como inexistente e antes de mais nada lançar a questão: ‘Será que algo como a metafísica é realmente possível?’ (Loc. cit.)

Que ela não é possível nos moldes clássicos, é o que Kant pretendeu demonstrar. Ao fazê-lo, sem dúvida, revolucionou o pensamento filosófico contemporâneo.


[1] Ibid., p. 31.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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