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Kant lendo a si próprio

Alguns filósofos não são modestos na leitura que fazem de si mesmos

Gonçalo Armijos Palácios*

            Tinha dito em outra ocasião que há duas razões para o avanço filosófico: a crítica do passado e a valorização de si mesmo. Vemos isso claramente exemplificado em Kant. A tradição, para Kant, tanto nas ciências como na metafísica, apenas tateava ou, no segundo caso, dava voltas sem andar um passo. Assim, a censura que faz do passado contrasta com o valor que atribui ao seu próprio trabalho. Podemos perceber isso no Prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura:

O objetivo desta Crítica da razão pura especulativa reside na tentativa de mudar o procedimento tradicional da Metafísica e promover assim uma completa revolução nela segundo o exemplo dos geômetras e investigadores da natureza.[1]

Kant, ousadamente, vai dizer depois que a metafísica nunca avançou um passo desde o seu nascimento e que só receberá o estatuto que lhe corresponde, o de ciência, se forem seguidas as diretrizes traçadas na sua obra.

            Note-se o emprego do termo “revolução” naquela passagem. O filósofo alemão tem consciência de que sua obra realizará uma transformação radical na concepção de ciência e de metafísica que fora herdada da tradição. À tradição atribui muitos avanços e contribuições, como a lógica que, segundo pensa, parece que nasceu completa em Aristóteles. Não ocorre o mesmo, contudo, com a metafísica que não só nunca fez uma contribuição significativa como, simplesmente, não fez absolutamente nenhuma contribuição.

            Kant acredita não ser esse o caso com sua obra. Assim, numa passagem dá a impressão de dizer com ironia o seguinte: “Mas que tesouro é este, perguntar-se-á, que pretendemos legar à posteridade com semelhante Metafísica purificada pela Crítica e conduzida por este meio a um estado duradouro?”[2] Mas não está sendo irônico. Concebe seu trabalho como uma contribuição sólida e permanente. Com sua Crítica, a metafísica ocupará definitivamente o lugar que merece como fundamento das ciências naturais. Por outro lado, sua obra possibilitará à razão pensar o reino da liberdade, da moralidade, sobre bases completamente novas. Kant acredita que seu legado não será desprezível: permitirá entender a estrutura, possibilidade e limites do conhecimento, mas, o que não é menos importante, revolucionará nossa concepção de moralidade, permitindo uma outra compreensão e uma outra fundamentação do agir humano.


[1] Ibid., p.14.

[2] Ibid., p. 15.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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