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Karl Popper e o criticismo mordaz

A ciência e a filosofia descansam numa característica humana: nossa falibilidade

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

Para compreender melhor a leitura dos filósofos talvez não haja melhor método que observar a leitura entre filósofos. Vimos já como o jovem Wittgenstein jogou praticamente toda a filosofia tradicional pela janela. Pois, segundo o filósofo, ela não passava de um conjunto de sem-sentidos. Essa, sem dúvida, é uma das mais radicais posições que qualquer grande filósofo já teve a respeito da tradição filosófica.

Outro grande pensador do século XX, Karl Popper, sem assumir essa posição extremamente radical, construiu seu pensamento a partir de uma crítica incisiva da filosofia tradicional. Vimos na seção anterior que a motivação que o levou a propor seu famoso critério de demarcação entre ciência e pseudociência foram as posições de marxistas, freudianos e adlerianos. Mas estendeu suas críticas a toda a filosofia e a todos os filósofos — sem importar quão importantes esses pensadores tenham sido.

Na Introdução de Conjecturas e refutações (de 1963), Popper se propõe a refutação da tese de que a verdade é evidente. Remonta-se, assim, ao início do pensamento moderno e critica as duas grandes correntes da teoria do conhecimento: o racionalismo e o empirismo. O racionalismo, que defendia que o caminho para atingirmos o conhecimento absoluto eram as evidências alcançadas por via puramente racional, e o empirismo, que acreditava ver nos dados empíricos (sensoriais) a base para a construção do conhecimento e da ciência. Contra essas escolas, Popper afirma que não há uma estrada real para a ciência, um caminho privilegiado e único que necessariamente nos leve a verdades absolutas, definitivas, incorrigíveis. A Introdução a que me refiro leva como título “Sobre as fontes do conhecimento e a ignorância”. Vejamos como Popper descreve o que nela quer fazer:

Procurarei mostrar nesta palestra[1] que as diferenças entre o empirismo e o racionalismo clássicos são muito menores do que suas semelhanças, e que os dois estão equivocados. (…) [Eu] creio que, apesar de que a observação e a razão tenham cada uma um papel importante para desempenhar, esses papéis dificilmente se assemelham com aqueles que seus defensores clássicos lhes atribuíram. Mais especificamente, procurarei mostrar que nem a observação nem a razão podem ser descritas como uma fonte do conhecimento, no sentido de fontes do conhecimento tal como têm sido concebidas até os dias de hoje.[2]

Os autores que ele está criticando, como podemos ver num parágrafo anterior, são os racionalistas e intelectualistas Descartes, Spinosa e Leibniz, e os empiristas Bacon, Locke, Berkeley, Hume e Mill. Obviamente, não é pouca coisa. Clássicos do pensamento ocidental. Mesmo assim, Popper considera que erraram ao defender a existência de fontes privilegiadas do conhecimento. Perceba-se que estamos nos referindo a um grupo em que se encontram alguns dos maiores pensadores da modernidade. Mas nem na ciência, nem na filosofia, existem donos da verdade. Não há depositários de verdades eternas e inamovíveis. Se algo de permanente existe tanto na ciência como na filosofia é o debate, a discussão, e a busca por descobrir e corrigir nossos intermináveis erros. Fazemos ciência e filosofia precisamente por isso, por sermos falíveis


[1] Lida na British Academy, em 20 de janeiro de 1960.

[2] Popper, Karl. Conjectures and refutations. Nova Iorque : Basic Books, 1962, p. 4

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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