0

Leitura: texto e contexto

Os textos costumam esconder  o que só o contexto mostra

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Minha primeira leitura filosófica foi O Príncipe. Eu era adolescente, de uns quinze ou dezesseis anos. Lembro claramente que a impressão que tive à medida que lia as primeiras páginas não foi boa. Pareceu-me um tanto superficial. Dada a importância do seu autor, percebi imediatamente que o problema não estava no texto e sim comigo. Não me encontrava preparado para aquela leitura. Minha falta de conhecimento do contexto que motivou a obra, das circunstâncias em que Maquiavel a escreveu, dos fins que perseguia, dos problemas que nela queria resolver etc., tudo isso impedia que apreciasse os alcances do pensamento do autor e me obrigava a permanecer numa leitura superficial daquelas páginas. Decidi deixar o texto de lado com a esperança de lê-lo em outra oportunidade — o que ocorreu anos depois com o resultado oposto.

            Sempre que começamos a leitura de um texto filosófico é como se entrássemos no meio de uma conversa. Dependendo dos interlocutores, do assunto, do tempo transcorrido desde o início da discussão, ou de todos esses fatores, há ocasiões em que não precisamos de maiores esclarecimentos para entender o que está se passando. Outras vezes podemos necessitar de ajuda. Um caso clássico é a discussão provocada pelas Meditações de Descartes. Algumas boas edições da obra incluem as objeções de outros filósofos, como Gassendi e Hobbes, e as respostas do autor. Para compreendermos e avaliarmos as teses centrais da obra não precisamos sair do texto original. Mas para entender as respostas de Descartes precisamos ter lido as objeções e, para entender estas últimas, ter lido as próprias Meditações. Ora, nem sempre encontramos na mesma obra as objeções e as respostas a essas objeções. O caso das Meditações é uma exceção. Uma situação diferente ocorreu com Kant. Pelas resenhas que recebeu sua Crítica da Razão Pura, das quais o filósofo alemão concluiu que ela não tinha sido compreendida, decidiu escrever uma outra obra, Prolegômenos a toda metafísica futura, na qual, seguindo um método de composição diferente do que utilizou na Crítica, repete as teses centrais dessa obra. Kant, no entanto, não deixa de esclarecer o leitor sobre esse fato nas primeiras páginas dos Prolegômenos. Contudo, por mais esclarecedora que possa ser a introdução que porventura faça o autor, sempre haverá, em muitas obras, algo que fique de fora, longe das informações que o leitor precisa para melhor entender e avaliar o conjunto das teses do autor.

            Há, sem dúvida, obras mais fáceis e outras mais difíceis. Alguns autores se caracterizam por possuir um estilo claro, mesmo transparente; outros, pelo contrário, têm uma forma de escrever confusa ou mesmo descuidada. Aqueles escrevem tendo em mente o leitor, estes nos passam a impressão de escrever bilhetes para si mesmos. Rousseau se encontra entre os primeiros, Wittgenstein entre os últimos.

            Para os que se iniciam no estudo da filosofia, jovens ou adultos, há, portanto, um leque amplo de opções. Há textos mais fáceis de se entender, há outros mais difíceis. Ambas as possibilidades, com suas gradações, estão determinadas pela combinação de fatores que residem na capacidade, preparação e vocação do leitor, por um lado, e as habilidade de escritor do próprio filósofo, somada à dificuldade do tema, por outro. Assim, há textos filosóficos que um leitor competente, com vocação para a filosofia e bem informado pode fazer, independentemente de sua idade. Contudo, é necessário que tenha a orientação de pessoas que tenham uma sólida formação filosófica. No Brasil, essa sólida formação filosófica já começou a ocorrer em escolas e colégios de várias regiões do país, e estamos começando a recolher os frutos, já nos primeiros semestres, nas universidades.

            Não posso deixar de insistir na importância e necessidade de uma sólida formação geral, a que deve oferecer a escola e o colégio. Podemos entender a letra de um texto qualquer, mas para entender seu espírito é preciso conhecer sua época. Podemos entender as palavras de um ator que recita um monólogo num palco escurecido, numa cena isolada. Mas, se subitamente o palco é iluminado e podemos ver as cenas anteriores e posteriores, entenderemos a trama, o porquê, o objetivo e o alcance desse monólogo. Só assim entenderemos a peça e veremos que o monólogo é, no fundo, um diálogo do autor com sua época. Por trivial que pareça, não podemos esquecer: entender um texto é compreender o contexto.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *