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Lendo Popper: sobre filosofia e filosofar

Querer definir a filosofia é pretender limitar os infinitos modos da nossa insatisfação intelectual

Neste texto o leitor vai encontrar minha leitura de Popper. “Minha leitura” no sentido da seção anterior, isto é, uma leitura que não atribuirá ao autor ideias que ele não teve, mas discutir as que de fato propôs.
Na seção anterior tínhamos visto a incompatibilidade entre as teses de Wittgenstein e Popper sobre filosofia e filosofar. Hoje vou discutir o mesmo assunto, mas tendo como foco as teses de Popper e como objetivo uma comparação entre as ideias desse autor e as minhas próprias.
Em Conjecturas e refutações, diz Popper: “(…) quero reafirmar minha convicção de que um filósofo deve filosofar: deve tratar de resolver problemas filosóficos em lugar de falar sobre filosofia.” Concordo parcialmente. É verdade que um filósofo deve filosofar, mas não é menos certo que, por diversas razões, deva falar sobre filosofia. É um fato histórico que filósofos importantes, e tão excelentes como o divino Platão, se viram na necessidade de chamar a atenção sobre a diferença entre um filosofar autêntico e um aparente e falso filosofar. Nesses casos, o filósofo toma a própria filosofia como objeto e problema. Pois, se alguma coisa é a filosofia, se em algo consiste a atividade de filosofar, não poderíamos não querer saber o que elas são. Caracterizar a filosofia, penso, é também um problema filosófico. Concordo, então, com Popper em que a filosofia deve resolver problemas filosóficos, e, entre eles, o da própria caracterização do que seja sua atividade específica. Ao tentar caracterizar o conhecimento científico, Popper fez filosofia da ciência; analogamente, querendo caracterizar o conhecimento filosófico, fazemos filosofia da filosofia. Popper não poderia discordar disso. (Veremos que Popper se trai e concede minha tese.)

O problema é que muitas vezes somos levados a falar sobre filosofia pela força das circunstâncias. Muito do que disse Platão sobre filosofia foi em resposta a posicionamentos dos sofistas. Em outras circunstâncias, quando a academia que se diz filosófica não discute problemas, mas se limita a exclusivamente comentar textos alheios, é importante mostrar que isso não é fazer filosofia, que filosofia é defender teses próprias, tentando resolver os próprios problemas. (Não podemos esquecer que muitos de nós somos pagos para ministrar aulas em departamentos de filosofia, e não creio que se nos pague para, semestre após semestre, ano após ano, década após década, unicamente comentar ideias alheias, mas para produzir as próprias. Pessoalmente acho patético que pessoas se dediquem a vida toda a meramente comentar assuntos de outros, sem nunca ter tido um problema e nem ter oferecido alguma solução própria a algum problema conhecido ou introduzido por eles mesmos.) É decisivo responder a esta pergunta: fazemos ou não fazemos filosofia. E, se fazemos, quais nossos problemas, nossos argumentos, teses, soluções, tentativas de solução, ou mesmo a proposta de dissolução de problemas?
É esse, justamente, o pano de fundo do texto de Popper que estamos discutindo. Pois se Wittgenstein está certo e não há problemas filosóficos autênticos, ninguém, nem Popper, faz coisa de valor, para não dizer filosofia. É o próprio Popper que reconhece isso: “Se a doutrina de Wittgenstein é verdadeira então ninguém pode filosofar, no meu sentido.” (p. 68) Com efeito, a concepção de filosofia de Wittgenstein no Tractatus é tão estreita que o único ou únicos que fariam filosofia seriam ele, Wittgenstein, e seus seguidores!
O que é peculiar na filosofia é que no falar sobre ela sempre pode surgir a possibilidade de se encontrar um problema e, na tentativa de resolvê-lo, filosofar. Esta possibilidade é reconhecida explicitamente por Popper — quem se declarara poucas linhas atrás contra falar sobre filosofia:

Minha única desculpa para falar aqui sobre filosofia — em lugar de filosofar — é minha esperança de que ao levar a cabo meu plano para esta conferência possa aparecer uma oportunidade para, no final das contas, filosofar um pouco. (Loc. cit.)

Em síntese, então, fazemos filosofia ao resolver problemas filosóficos, mas também quando, ao falar sobre filosofia, surgem problemas que exigem de nós uma solução.
Wittgenstein, temos visto, adota no Tractatus uma das posições mais radicais contra a própria filosofia: não existem nem proposições nem problemas filosóficos. Segundo ele, as proposições filosóficas são pseudoenunciados. Eles não fazem sentido. Se isso é verdade, Platão, Aristóteles, Santo Tomás, Ockham, Descartes, Kant etc., não dizem absolutamente nada. Popper quer concordar parcialmente com ele, pois toda filosofia que não se inspira em problemas fora da filosofia, particularmente nas ciências, não é propriamente filosófica. Isso faz que todos os autores que acabei de citar sejam, para Popper, filósofos. Assim, os “autênticos problemas filosóficos” vêm de fora da filosofia — o que não deixa de resultar surpreendente — e, por isso, não existem problemas puramente filosóficos. Esta posição leva Popper a dispensar a filosofia hegeliana, como sendo um conjunto de disparates, assim como a filosofia heideggeriana, à que ridiculariza. Vejamos:

Tenho prometido dizer algo em defesa das ideias de Wittgenstein. O que quero dizer é que, primeiro, há muito escrito filosófico (especialmente na escola hegeliana) que pode ser criticado com justiça por sua verborragia sem significado; em segundo lugar, que este tipo de escrita irresponsável foi posta em xeque (…) pela influência de Wittgenstein e os analistas da linguagem (porém é possível que a influência mais completa nesse respeito fosse o exemplo de Russell quem, pelo incomparável encanto e clareza de seus escritos, estabelecera o fato de que a sutileza de conteúdo é compatível com lucidez e um estilo despretensioso. (Meus grifos, p. 71)

Perceba-se a diferença de tratamento que recebem Hegel e Russell.
Popper afirma que quando a filosofia se afasta dos problemas que, para começar, motivaram a reflexão filosófica, suas discussões vão se tornando particularmente vazias. Com isso eu concordo. Não podemos entender uma teoria — ou sequer uma tese — filosófica sem conhecer o problema que a motivou e o fim pretendido com a solução. Discordo, no entanto, com a tese seguinte de Popper, segundo a qual os problemas filosóficos devam sempre vir de fora da filosofia. Ele diz:

A degeneração das escolas filosóficas por sua vez é a conseqüência da crença equivocada de que podemos filosofar sem termos sido compelidos a filosofar por problemas que se originam fora da filosofia — nas matemáticas, por exemplo, ou na cosmologia, ou na política, ou na religião, ou na vida social. Em outras palavras, minha primeira tese é esta: Problemas filosóficos genuínos estão sempre enraizados em problemas urgentes fora da filosofia, e morreriam se estas raízes apodrecessem.” (Grifos no original, pp. 72-3.)

De novo, concordo num sentido, e discordo noutro. Muitos problemas, de fato, surgiram e continuam se originando fora da filosofia. Mas as perguntas: “qual é a origem de todas as coisas?”, “em que consiste a origem de todas as coisas?” foram inicialmente, e continuam sendo, perguntas essencialmente filosóficas. Com o tempo passaram a formar parte, também, da astrofísica, da física e da química, mas num sentido mais específico e limitado. A verdade histórica é que — e Popper parece que quer desconhecer isso — a maioria das ciências tradicionais nasceu de preocupações filosóficas e como preocupações filosóficas. É, então, ao contrário do que diz Popper: é originalmente a filosofia, com suas preocupações emimentemente filosóficas, que deu lugar às ciências e as alimentou. Hoje, depois do desenvolvimento das ciências e o avanço da filosofia, elas (a filosofia e as ciências) se alimentam, motivam e condicionam mutuamente. Em conseqüência, há problemas que foram e continuam sendo pura e essencialmente filosóficos, por um lado, e outros, que procedem das ciências ou da vida social ou das questões políticas, econômicas e até artísticas. O erro de Popper é o erro comum daqueles que, como o Wittgenstein do Tractatus, querem impor uma definição prescritivista da filosofia: filosofia deve ser isto ou aquilo e quem não faz o que eu julgo e sanciono cai fora, isto é, não é filósofo!
Tendo demonstrado o erro de Popper, defendo a tese seguinte: se faz filosofia de muitas maneiras, e o que as caracteriza, mas não as define, é a busca de soluções de qualquer problema que, sabemos, não pode ser resolvido com o auxílio de nada do que conheçamos ou achamos conhecer, seja nas ciências, seja nas artes, na literatura, seja na própria filosofia.
Nossas reflexões filosóficas estão para preencher um vazio que nada pode preencher. Querer definir a filosofia é pretender encapsular a priori os infindáveis modos de existir de nossa insatisfação humana. (Esta, por sua vez, é uma tese filosófica.)

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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