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Linhas de Resistência

ensaio de Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Geveraz Amaral, Augusto Hunguana e Samuel Ngale

Eboussi Boulaga, um dos maiores filósofos africanos da última geração, intitulou um dos seus últimos livros, Linhas de Resistência. Para o filósofo camaronês, as linhas de resistência se entrelaçaram, sempre,  com as linhas de convivência, um Mit Sein (viver juntos)  desejável – e não só possível -, sem violência, entre as diferentes sociedades humanas. 

Existe uma diferença fundamental entre a idade antiga e a idade moderna quanto ao tipo de convivência e às formas de resistências. Se Aristóteles vislumbrava uma “amizade no signo de uma equivalência desinteressada” como substrato ético para que todos pudessem buscar a eudemonia (felicidade), com o advento na modernidade o optimismo eclipsou. As lutas económico-políticas do capitalismo que, desde o século XVI, engodaram o processo da sua mundialização  – como ensina a história de Anais de Braudel – levou a duas consequências: de um lado, uma maior complexidade da convivência devido a competição entre classes sociais e, do outro, o início – na sociedade mundo-, de um inédito processo de relação baseado na desqualificação da humanidade do outro e na dominação; com o Norte na potestade do domínio e o Sul na subserviência obediente.

O período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna foi marcado por violências inauditas contra o novo mundo e contra o continente africano. Aliás, o epílogo da controvérsia de Valladolid (Genes de Sepulveda versus Bartolomeu de lãs Casas) de 1550 (considerado o primeiro debate sobre direitos humanos, em clara omissão da carta Mandanga do século XIII no Império do Mali) levou,  por um lado, ao reconhecimento jurídico da humanidade dos índios – graças a descoberta do Homo Ridens de Aristóteles, cristianizado por Tomás de Aquino – e, do outro, a legitimação da escravatura dos negros.

A brutalidade que a Europa praticava extramuros também caracterizava o seu modo de relação  (toute proportion garde) intra murus.  Aliás, foi essa violência que moldou o pessimismo do pensamento político de Hobbes, quanto à natureza do homem (Homo homini lupus), e o seu consequente credo de que, só a ascensão ao poder de um Leviatã, um déspota legibus solutus (em cima das leis), poderia por termo a violência e impor a razão (tolerância, diálogo e busca de consensos): o logos socrático com o qual Platão substitui a Paideia de Homero, Heródoto ou Eurípides.

Versões mais edulcoradas, por vezes opostas, foram desenvolvidas por parte de pensadores “contratualistas”, como Locke ou Rousseau. Aliás, o genebrino assumiu que, na base das violências a que Hobbes assistiu estava um falso contrato, nascido da prepotência e  arrogância dos que, in primis,  ousaram a usurpação privatista da apropriação, “isto é meu!”. A privatização do meu pelo eu, determinou a inversão da linha de convivência e está na origem da existência de servos e patrões e, a partir de então,  a linha de resistência contra a usurpação teve de se rearticular e reorganizar; mas isso é o compêndio da busca – teórica e prática – da justiça, que está sempre a nossa frente. Aliás, a lenta e paulatina metanoia da conversão da razão da força em força da razão – destituída de toda a uniformidade-  tem ainda caracterizado -no essencial- as lutas, o debate das ideias e da produção filosófica de Marx a Derrida, passando por John Rawls ou Habermas.

Um cenário de longe pior – desde a Ius inventionis da escola de Salamanca – tem se abatido sobre o Sul escravizado, colonizado e humilhado. Aqui não há nenhuma possibilidade de convivência entre mestres e escravos hegelianos. A escravatura jurídica – terminada em 1865 nos EUA e em 1885 no mundo luso-brasileiro – foi rapidamente substituído desde 1885 pelo colonialismo e este, por sua vez, pelo sistema de trocas desiguais (Samir Amin). As linhas de resistência, desde Haiti de Toussaint Louverture, Zumbi dos Palmares, Harriet Tubman nos EUA, Marrons da Jamaica ( John Stuart Mill)  até a África do Sul de Mandela, passando pelo PAIGC de Cabral, Frelimo de Machel, MPLA de Neto (…)  tem custado muitos horrores é muito sangue.

Houve um momento em que linhas de resistência dos escravizados – colonizados do Sul global juntaram-se (Bandung, Tri Continental) e procuraram associar-se as lutas dos oprimidos do Norte. Os Danados da Terra pareciam ser tanto os africanos ou os latino-americanos indígenas, quanto os operários europeus ou americanos. Karl Marx não se ocupou, ex professo, da opressão colonial isso, hegelianamente, estava fora da história (…). Isso não obstante, – natura non facit saltus -, o pensamento daquele que intimava a filosofia a deixar de ser uma hermenêutica a favor de uma acção (Blondel) transformadora, inexoravelmente, representou uma base importante (talvez a única teoricamente percorrível) para que as lutas dos dois lados da opressão ensaiassem uma tentativa de aproximação. Os esforços de Samir Amin em aprofundar  o “desenvolvimento desigual” dentro do sistema – mundo de Wallerstein não teve muito êxito, faliu sobretudo com o sonho de uma sociedade mais justa com base nos ideais de justiça social de inspiração marxiana.

Hoje somos atravessados por uma historicidade em que em as utopias do fim da história (Fukuyama) deixaram lugar a guerras de civilizações (Huntington ) a corrida frenética em direção a recursos, a assimetrias sem precedentes, ao retorno de extremas direitas e políticas fascistas e de opressão. Consequentemente, a linguagem das relações entre nações e estados voltou a ser, como não acontecia desde o fim da guerra fria,  a Ius ad Bellum (lei da guerra). Neste dantesco quadro histórico, onde buscar as linhas de convivência e ter prontas as linhas alternativas pacíficas de resistência?

A nível económico, onde os ocidentais reinam em mestres sobre a economia mundo através do sistema de Bretton Woods (americanos sempre na presidência do BM e os europeus do  FMI), acrescido por sistemas bilaterais perversos como a FrancAfrica, a emergência e o alargamento dos BRICS assinala uma nova postura, mais viril, do chamado Sul global – ainda não se sabe quanto certa, funcional e eficaz – para que novas linhas de resistências possam se afirmar, diante da hegemonia da ocidentalização do mundo (Serge Latouche). Outros sinais inequívocos de reivindicação de uma reorganização da economia mundo, são a crise do franco CFA na África Ocidental, a desdolarização dos BRICS, o renmbimbi chinês como moeda alternativa para as trocas comerciais (…).

Do ponto de vista político, desde há algumas décadas a esta parte, os países chamados emergentes –China, Índia, Nigéria, África do Sul, Brasil (…) – reivindicam um lugar ao sol (no conselho de segurança das Nações Unidas). Na Europa chegou-se a perspectivar a hipótese que a França (e então a Inglaterra) abdicassem do direito de veto a favor da União Europeia -era conhecer mal as pretensões imperiais de potências decadentes (…). As lutas por uma revisão e restruturação das organizações mundo ainda não sortiram os efeitos desejados , mas já custaram o segundo mandato a Boutros Boutros-Ghali, prisão a Lula da Silva  e morte a Muammar Gaddafi.

O processo instaurado pela África do Sul no Tribunal penal Internacional, abre um novo capítulo na história das resistências. Com o seu acto, a África do Sul questiona a validade universal das leis e dos valores (ou contra valores)  que as subentendem, colocadas como orientadoras dos modos de relação entre povos e estados, desde a criação das Nações Unidas. 

A justiça dos vencedores nos processos de Nuremberg (que serviram de base para a criação do Tribunal Penal Internacional)  continuou com processos a déspotas  africanos e alguns criminosos de guerra europeus da segunda zona (Milan Martin, Dragomir Milosevic). Porém, como Norimberga ignorou os crimes de guerra dos aliados até as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, o TPI  nunca se ocupou dos massacres e das guerras coloniais, das guerras ideológicas de imperialismos interpostos, ou das guerras bushianas “ das mentiras da verdade”   (Azagaia).

A ação da África do Sul contra Israel interroga o estatuto das leis (igualdade das pessoas, países e povos perante ela), do direito internacional – escrito, proclamado mas aplicado só para alguns e segundo as conveniências – afim de intimar o Ocidente legislador, a se conformar com as leis que ele mesmo promulgou. É para que o que a TPI chamou  humanitarian nightmare (pesadelos humanitários): prisões a céu aberto, bombardeamentos contra civis, destruição de hospitais (…) não se repita impunemente e no silêncio do mundo, mesmo se praticado em nome de todo e qualquer nazismo, colonialismo, sionismo, fascismo, supremacismo ou qualquer outro ismo.

A RSA traz de volta um problema do passado mas nunca ultrapassado,  a luta pela igualdade entre raças (Firmin versus Gobineau) e povos, que está na origem do Pan-Africanismo político-institucional. Só a falta do sentido histórico e de capacidade de apreender (intus legere) o sentido existencial da aposta em jogo, pode explicar o mutismo cobarde e cúmplice dos estados africanos, que deixam o governo do ANC  – num dos seus raros actos dignos da herança de Mandela – sozinho e a baleia dos vitupérios e retaliações vingativas dos senhores do mundo.

Eboussi Boulaga volta a ser da actualidade com a ideia das linhas de resistência, mas estas têm de ser sempre reactualizadas e também recordar, que a luta dos marginalizados do mundo pressupõe um questionamento dos níveis e qualidades de convivência no interior de cada país, a começar pelo Sul do mundo. Em Moçambique, à difícil convivência histórica de ideologias e partidos, junta-se agora a crescente praga de etnocentrismos, regionalismos, religiosismos e, sobretudo, a discrepância crescente entre classes e regiões do país. Evitar os tradicionais descensos e resistências pelas armas e pela violência, é um imperativo moral que exige, da política, a sabedoria de costurar a infieri (continuamente) a sociedade pela justiça (justiça costureira).

Dizer hoje a luta continua significa juntar-se a resistência dos Danados da Terra nas suas batalhas  económicas,  políticas e do direito. Isso pressupõe que não soçobremos em economias de dependência do extrativismo, dominada por consórcios internacionais, não abdiquemos a nossa soberania a favor dos conselhos – ordens do FMI/BM e seguemos, a risca, os valores do estado de direito inscritos na nossa constituição, que não se compadecem com nenhumas pretensões leviatanas.

Talvez estes sejam os pilares que deveriam nortear os nossos debates internos e as nossas próximas eleições…

Severino Ngoenha, Luca Bussotti, Geveraz Amaral, Augusto Hunguana, Samuel Ngale

Marcos Carvalho Lopes

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