por Marcos Carvalho Lopes
E quando eu conheci Martinho da Vila, eu achava que conhecia, mas – aí de mim – a verdade é que não o suficiente para ter a medida do que deveria re-conhecer em sua presença. Isso é muito comum de acontecer, porque os seres humanos são humanos e criam heróis, ídolos, poetas, pontos de referência que, como “ideal”, deixam distante a possibilidade de que alguém possa ser ao mesmo tempo humano sendo herói, ídolo, poeta. Martinho da Vila me pareceu sempre demasiadamente humano, fazendo o samba aproximar-se da fala, numa dicção que comunica com facilidade, um sorriso que inspira simpatia e contagia, mas que não alimenta metafísica. Eis aí o segredo (Aberto Caeiro demais): o maior mistério é não haver mistério algum. A grandeza de ser simples é um contraponto em relação ao que se cultiva na academia, mas isso não significa que a polifonia gere necessariamente desarmonia: é preciso aprender com o carnaval, com o samba e entrar na roda, jogar o jogo de não somente traduzir o melhor no mais comum, mas buscar a direção prática, de fazer diferença nas lutas que vale a pena lutar.
Em sua autobiografia Kizombas, andanças e festanças Martinho da Vila principia seu texto com um “Canto Livre” em que justifica sua escrita, mas que serve para muito mais. Três parágrafos logo no começo do texto, que surge com sentenças meio desconexas, como se o pensamento fosse se descrevendo em movimentos diversos, são um bom começo para entender como Martinho se pensa como criador:
“Que bonito deve ser um país sem preconceito cultural! Todo profissional de criação, entendendo ou não, gostando ou não, concordando ou não, deve respeitar a criatividade popular.
Misturar culturas é sempre bom.
Criar exige um sacrifício, uma abnegação, uma vontade de despretensiosamente colaborar com a humanidade. Não basta ler, pensar. Tem-se que participar, batalhar pela concretização dos sonhos” (1998, p.19).
Não vou tentar explicar o que é fácil sentir: que a coerência deste texto é dada por uma vida, com destino construído criativamente. Foi assim que o compositor se apresentou no samba Filosofia de Vida que lançou em 2008, quando comemorava seus 70 anos: “Meu destino eu moldei/Qualquer um pode moldar/Deixo o mundo me rumar/Para onde eu quero ir/Dor passada não me dói/E nem curto nostalgia/ Eu só quero o que preciso/ Pra viver meu dia a dia”.
Mas o encontro com Martinho da Vila veio como parte de uma entrevista em que ele falava sobre sua trajetória de vida, entrevista que foi uma homenagem muito bem feita e de quem o conhecia muito bem: diante de Pedro Bial ele se soltou e contou histórias de uma forma contagiante, com o pandeiro na mão, reviveu também parte da trilha sonora que construiu em seu caminho. Logo ele, que normalmente é esquivo em entrevistas, “conversar não é meu forte”, disse no lançamento do DVD Filosofia de vida – Martinho da Vila – O pequeno burguês, de 2010.
Minha posição não foi confortável. Acabei ficando no sofá entre o Lauro José e o Martinho da Vila. Os dois cruzaram as pernas e eu resolvi segurar meus joelhos sinalizando que não consegui ficar relaxado. Minha situação era um pouco desconfortável em sentido mais amplo: de início, o programa trataria uma pequena amostra do Bota a Fala, projeto de extensão que coordeno que busca utilizar a linguagem do hip-hop para promover uma educação democrática; mas, por fim, a equipe do programa ficou tão fascinada com aquilo que encontrou no Campus dos Malês da UNILAB em São Francisco do Conde, que o grupo de hip-hop virou mote para falar desta universidade e de sua proposta de integração do Brasil com os países da lusofonia. O que a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira tenta desenvolver, Martinho da Vila encarna. Aos 79 anos, o cantor-compositor e escritor de diversos livros, enfim é estudante numa faculdade – particular –, cursa Relações Internacionais. A motivação para escolher este curso foi tentar a aprender um pouco de teoria que lhe desse mais embasamento para exercer o cargo de Embaixador da Boa Vontade da Comunidade dos Países Lusófonos (CPLP), cargo para o qual foi nomeado em 2006, como reconhecimento de seu mérito na promoção dos valores da Lusofonia.
Numa entrevista de 2016, Martinho da Vila, depois de explicar sua relação com Angola, foi perguntado sobre o que achava da sinalização do então Ministro das Relações Exteriores, José Serra, de que fecharia embaixadas brasileiras na África. Martinho ressaltou o desconhecimento que essa intenção demonstrava: “É um absurdo completo o Serra ser chanceler. Ele não tem nada a ver com Relações Internacionais, não tem as características de um chanceler. Ele tinha era que fazer o que estou fazendo: ir para a faculdade estudar um pouco para aprender sobre o assunto”. Além disso, explicou que estava no quarto período do curso de RI buscando se aperfeiçoar: “A prática das Relações Internacionais eu tenho há muito tempo. Sou embaixador da boa vontade da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa). Quis entrar para a faculdade para entender mais da teoria. É o que Serra deveria fazer, para adquirir mais conhecimento. O Niemeyer com 90 anos estudava. Eu tenho 78. Na minha sala tem gente de 20 anos. Tudo joia! Eu sinto que eles gostariam que eu fizesse muitas intervenções durante a aula, mas eu não faço. Estou lá também para fazer um estudo sobre a faculdade. Não conhecia o mundo universitário”.
Com essas informações sobre a trajetória de Martinho e sua curiosidade de “pesquisador” sobre o mundo universitário, fica mais fácil entender o mote que a produção utilizou para promover esse encontro: eu estava lá para falar sobre o Bota a fala e, assim também, apresentar a UNILAB e sua proposta de integração entre Brasil e África para um Embaixador da CPLP. Por isso, talvez, segurei minhas pernas para não tremer nessa tarefa de representar esse projeto que é tão valioso e promissor, quanto é, ao mesmo tempo, pouco conhecido, e, no atual contexto, frágil.
“A viagem pelo mundo da lusofonia foi o acontecimento mais importante que ocorreu na minha vida. Tive contato com culturas muito ricas e me enriqueci culturalmente. São milhões de pessoas em países de vários continentes falando a mesma língua, mas não é só isso, todos se identificam. Embora aja diferenças, com cada país num estado de desenvolvimento, nenhum cidadão acha o outro estranho. Reforço que uns estão na África, e outros na Europa, América do Sul e Ásia, todos em sintonia” (p.219). Este é um trecho do livro Os lusófonos, um híbrido de romance e autobiografia, que Martinho da Vila publicou em 2005, e, numa versão revisada em 2006. O texto é fácil, tendo como público-alvo justamente aqueles que não tem hábito de ler: a ideia é atingir mais gente, apresentando o “mundo da lusofonia” através de uma narrativa.
A personagem central do romance, Aristides Samora Cabral Neto, carrega em seu nome referência a lideranças na luta pela independência dos países da África Lusófona que se tornaram os primeiros presidentes dos países independentes (Aristides Maria Pereira (1923-2011), primeiro presidente de Cabo Verde; Samora Machel (1933-1986), primeiro presidente de Moçambique; o “Cabral” de Luís Cabral (1931-2009), primeiro presidente de Guiné-Bissau, quebra a regra por fazer referência ao líder revolucionário bissau-guineense Amílcar Cabral (1924-1973); e Agostinho Neto (1922-1979), primeiro presidente de Angola). Aris, alcunha do protagonista, é um estudioso da lusofonia nascido na ilha de Príncipe, filho de santomense com português, e o romance narra sua epopeia pelos territórios de língua oficial portuguesa.
Preocupado em traduzir as vivências do autor de modo didático, sendo essa sua principal virtude e defeito, o texto por vezes exagera, como no seguinte diálogo logo no início do romance:
“- O que é lusofonia?
– É uma ação efetiva preconizada pelo ex-presidente de Portugal, Mario Soares, em conjunto com o ex-embaixador do Brasil em Portugal, José Aparecido da Silva. O principio filosófico visa o interconhecimento e à interligação afetiva entre os povos lusoparlantes. A teoria fundamenta a principal filosofia da comunidade formada por países de língua portuguesa, que envolve ações de solidariedade e intercâmbio cultural.” (p.4).
Os lusófonos pode ser lido como romance, ensaio, em muitos pontos como autobiografia, guia-turístico cultural, ou uma minienciclopédia, já que depois da narrativa, o livro traz textos informativos, alguns escritos por colaboradores, sobre cada um dos países lusófonos e um breve ensaio do ex-ministro da cultura, Francisco Weffort, de título “Cultura brasileira mestiça, literatura e samba”. As palavras de Weffort podem ser consideras cúmplices do projeto de Martinho da Vila, mas não sua síntese. Quem tenta exercer ao mesmo tempo a crítica literária e poesia, em geral não consegue atingir o mesmo resultado nos dois campos: a poesia tende a desvelar aspectos impensados e a prosa, por vezes reifica pontos de incerteza como teoria. Por isso, no caso de Martinho da Vila é melhor não esquecer o projeto de intervenção deste romance já havia sido mote para um álbum inteiro em 2000, com o nome Lusofonia, em que o cantor apresentou canções e desenvolveu misturas musicais que dialogavam com os países lusófonos propondo uma síntese utópica em um reconhecimento em que as diferenças dialogariam produzindo novas misturas. Esse “projeto profético” aparece no samba-enredo “Lusofonia”, de Martinho da Vila e Elton Medeiros, que em sua letra começa ponderando:
Eu gostaria de exaltar em bom Tupi
As belezas do meu país
Falar dos rios, cachoeiras e cascatas
Do esplendor das verdes matas e remotas tradições
Também cantar em guarani os meus amores
Desejos e paixões
Bem fazem os povos das nações irmãs
Que preservam os sons e a cultura de raiz
Martinho da Vila não ignora toda a polémica em torno da adoção da língua portuguesa como idioma oficial dos países da África Lusófona: não seria melhor adotar línguas originariamente africanas, que correspondessem aos costumes e modos de vida locais? A descolonização das mentes não precisaria trazer também uma descolonização da língua? O autor não desconhece essas questões, e faz ecoar o projeto de Policarpo Quaresma, no romance O triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, de tornar o tupi-guarani a língua oficial do Brasil. Preservar as línguas, sons e modo de vida da cultura tradicional é algo que as nações irmãs estão certar em querer preservar. Mas como fazer isso sem participar do diálogo entre as nações? A segunda estrofe da canção pondera:
A expressão do olhar
Traduz o sentimento
Mas é primordial
Uma linguagem comum
Importante fator
Para o entendimento
Que é semente do fruto
Da razão e do amor
O cantor-compositor pressupõe certa simpatia, que se traduzir já pelo olhar, experiência que Martinho teve quando visitou Angola pela primeira vez em 1972: “Tive certeza da minha ancestralidade angolana com o estado emocional em que fiquei quando estive em Angola pela primeira vez e pelas vibrações que sinto, até hoje, quando piso aquele solo” (p.68). Esta experiência de reconhecimento virou canção, Martinho da Vila se apropriou do ritmo angolano do semba para compor com Rosinha de Valença o “Semba dos ancestrais” gravado em 1985 no álbum Criações e Recriações, cuja letra diz: “Se teu corpo se arrepiar/Se sentires também o sangue ferver/ Se a cabeça viajar/E mesmo assim estiveres num grande astral//Se ao pisar o solo teu coração disparar/ Se entrares em transe em ser da religião/ Se comeres fungi, quisaca e mufete de cara-pau/ Se Luanda te encher de emoção// Se o povo te impressionar demais/ É porque são de lá os teus ancestrais//Pode crer no axé dos teus ancestrais”.
Mas a experiência de Martinho se passou justamente num momento em que se acirrava a luta pela libertação de Angola. O cantor explicitamente se posicionou a favor da independência e, quando essa aconteceu, tornou-se uma espécie de mediador cultural na aproximação do país com o Brasil: em 1980, com o Projeto Kalunga de Fernando Faro, foi junto com Clara Nunes, Ivone Lara, João Nogueira, Geraldo Azevedo, Dorival Caymmi, Elba Ramalho, Djavan (visita que gerou a canção “Luanda”), Chico Buarque (onde compôs “Morena de Angola”), Francis e Olivia Hime etc. Em 1983, Martinho promoveu o movimento inverso, trazendo para o Brasil diversos artistas de Angola – Velho Bastos, Mestre Geraldo, Elias Diakimuezo, Paulo Kaita, Dina Santos etc. – no espetáculo Canto Livre de Angola (que foi gravado como LP).
Através da canção popular Martinho buscou construir pontes entre Brasil e Angola, e foi cantando que ele conheceu os países lusófonos. A esperança que ele deposita nas possibilidades de transformação através da cultura não deixam de manter certa ambiguidade, mas não são ingênuas, como ele mesmo negrita: “Há muitas formas de luta. A mais arriscada é feita com o exemplo claro, com a postura, com a palavra forte. A mais eficiente é feita indiretamente, sem rancor e conquistando através da cultura, usando-se as ocasiões oportunas para se mandar mensagens” (1998, p.105).
Na esquina em que Martinho da Vila canta a hermenêutica deve considerar a ambiguidade e a dupla-face de Exu. Como todo profeta que se preza, Martinho acredita no poder de sua mensagem, na capacidade da canção, do amor de transcender as divisões, mas isso não é algo ingênuo, mas uma forma de luta, que não abre mão nem da paciência da desobediência civil, nem dá ira negra que é o orgulho da autodeterminação, mas funde estes elementos em uma vida, ou na letra de um samba: “A paciência sempre Lutherkhingueando/mas Malcolm X é um demônio incorporando/ Meu coração malandramente te avisando/ Mas você pensa que eu estou só implorando, por favor!” (Letra de Ai, ai, ai meu coração de 1987).
A lusofonia tem suas confusões e promessas, utopias cheias de obcecação: não há quinto império no horizonte desta língua, por isso, a insistência em navegar e seguir a aventura já vem marcada por saudade e melancolia. Não é este um fado ou uma valsa que ganhou ritmo nos descaminhos dessa trajetória, é algo diferente, um sonho que sonha um sonho sonhado: dor que ganha forma em canção. A última estrofe da letra de “Lusotopia” profetiza:
É sonho ver um dia
A música e a poesia
Sobreporem-se às armas
Na luta por um ideal
E preconizar
A lusofonia
Na diplomacia universal
O que a abordagem da Lusofonia feita por Martinho da Vila nos ensina? Em primeiro lugar, podemos seguir o pesquisador André Conforte, destacando o respeito que o autor apresenta para com a diversidade dos países e suas especificidades. Neste sentido, Conforte se vale de uma citação do escritor moçambicano Mia Couto, que vão na mesma direção deste poeta da Vila: “Os lusófonos são pensados e falados do seguinte modo: Portugal, Brasil e os PALOPS [Países africanos de língua oficial portuguesa]. Surgimos como um triangulo com vértices um no Brasil, um em Portugal e um terceiro em África. Ora, os países africanos não são um bloco homogêneo que se possa tratar de um modo tão redutor e simplificado. Não se pode conceber como uma única entidade os 5 países africanos que mantém, entre si, diferenças culturais sensíveis. As nações lusófonas não são um triângulo, mas uma constelação em que cada um tem a sua individualidade”.
Em segundo lugar, e talvez mais importante, está a lição de que devemos estudar mais e procurar compreender melhor a cultura africana, especialmente a de sua parte lusófona, para entendermos o Brasil. Por exemplo, o CD Lusofonia tem arranjos complexos que promovem o diálogo e a fusão entre ritmos, mas também promovem a descoberta de conexões ainda não muito bem estudadas ou divulgadas; explica o cantor-compositor, que ao fazer uma versão da canção “Carambola”, de São Tomé e Príncipe, “constatei que ela é muito semelhante aos calangos fluminenses trazem e aos pagodes caipiras de São Paulo das catiras e carurus”. Quem ouvir a canção “Traço de União” que Martinho compôs juntamente com João Bosco, encontrará nela um programa e um esboço de estudo sobre a influência da África na música popular. Cabe a nós, acadêmicos e pesquisadores, multiplicar esse tipo de exercício para outras áreas do saber.
No dia 31 de Outrubro Martinho da Vila receberá da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o título de Doutor honoris causa. A justificativa para esse reconhecimento é múltipla, como é complexa a contribuição de Martinho para a “invenção” da Lusofonia como mais do que uma utopia. Ora, não é hora da UNILAB seguir o exemplo da UFRJ e reconhecer esse embaixador e profeta da Lusofonia com um doutorado honoris causa justamente por causa de toda sua convergência com seu projeto desta instituição? Valeu Martinho, Martinho valeu!
Trilha sonora mínima deste texto:
Filosofia de vida
Traço de união
Semba dos ancestrais
Lusofonia
Meu homem
Assim não, Zâmbi
Kizomba, festa da raça
Axé pra todo mundo
Daqui, de Lá e de Acolá
Do além
Marcos Carvalho Lopes é filósofo, trabalha como professor na Universidade da integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB), no Campus dos Malês em São Francisco do Conde-Bahia, ministrando a disciplina de filosofia africana no Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades.
Texto precioso, Marcos! Vou procurar conhecer melhor a Unilab. Sucesso e um abraço!
Obrigado professora! Tomara que essa vontade se espalhe; é um projeto muito ameaçado.Abraços!