De certo, todos nós, seres humanos, marxistas e não marxistas, se o apóstolo Althusser tivesse tido razão nos seus desvarios, não passaríamos de um bando de imbecis
Gonçalo Armijos Palácios
Algum tempo atrás escrevi um artigo que causou rebuliço em pelo menos um círculo de seguidores de Marx de uma cidade do interior. O título do artigo era “Marx, padroeiro dos imbecis”. Pelo visto, parece que alguns marxistas vestiram a carapuça e ficaram indignados. Certamente, só devem ter lido e inferido o resto — seguindo o exemplo de um famoso marxista francês contemporâneo: leu uma parte de Marx e inventou o resto… Muito me diverti quando fiquei sabendo da reação, pois qualquer manifestação por parte dos membros daquele grupo teria mostrado que a ironia do título se aplicava realmente a alguém.
O título do artigo, na verdade, não se referia aos simpatizantes de Marx e sim a alguns intelectuais influentes que fizeram — e ainda fazem — da teoria de Marx gato e sapato. Um dos responsáveis disso foi um dos mais respeitados pensadores marxistas dos anos 70: Louis Althusser. Este pensador francês era o vivo retrato da maioria de marxistas que conheci: não liam muito, de Marx liam pouco ou quase nada e, isto sim, tinham uma imaginação exuberante. Gostavam de fazer análises mirabolantes da conjuntura histórica — “conjuntura” era um termo que um marxista que se respeitasse não podia deixar de usar — e quem discordava era considerado por eles um imbecil, um reacionário ou um cínico.
Paralelamente ao meu curso de graduação — filosofia — li tudo que encontrava de Marx. Foram, de fato, vários anos lendo Kant, Hegel e Marx. Minha predileção pelos clássicos sempre fez que dispensara comentadores. Confesso que isso virou costume — ou mania. Li Kant e Hegel não por ser eclético, mas porque não se entende Marx sem compreender Hegel e não se pode passar por Hegel sem ter lido Kant. Como lia muito Kant, e com prazer, devo dizer, meus amigos marxistas diziam que era neokantiano — quase um crime se lemos algumas coisas de Lênin contra os empiriocriticistas. Mas lia Kant e Hegel, reconheço, para ter bases teóricas que me permitissem a compreensão de Marx. Passei por Kant e Hegel e, finalmente, li Marx.
Tendo lido Marx, foi uma surpresa me inteirar de teses supostamente marxistas atribuídas a Althusser. Pelo prestígio que o filósofo francês tinha, mal podia eu supor que poderia defender teses que, a meu ver, em nada se encaixavam com o que eu tivera lido no companheiro de Engels. Mas qual não foi minha surpresa quando, após adquirir os textos de Althusser, vi as teses esdrúxulas que defendia como sendo de Marx.
Precisamente uma das teses que eu considerei estapafúrdias, se vista de uma ótica marxista, tinha a ver com ideologia. Decidi, então, escrever minha monografia de graduação mostrando a incompatibilidade entre o que Marx propusera e o que Althusser lhe atribuía.
O Marx que eu tinha lido fez críticas aos seus conterrâneos por estes estarem completamente atrasados se comparados a franceses e ingleses. Estes queriam entender a realidade olhando os processos históricos e econômicos e não, como os alemães, perdendo-se em divagações puramente conceituais. Na Ideologia alemã, Marx aponta justamente esse erro e chama a atenção para a necessidade de estudarmos os processos materiais em que os homens estão inseridos para podermos entender a história e a sociedade e não, como os alemães, estudar as idéias que os homens fazem de si mesmos.
Essa visão de Marx explica sua tese de que os processos materiais determinam a consciência dos homens e não ao contrário. Uma realidade alienante, segundo ele, tenderá a produzir indivíduos alienados. Mas, note-se, “tenderá” não quer dizer “necessariamente determinará”. Não há, em Marx, um mecanicismo. Isto é, não é sempre e necessariamente que teremos indivíduos alienados em sociedades alienantes. A alienação não se espalha como uma doença contagiosa nem como uma peste incontrolável. Caso contrário, não faria o menor sentido o chamado famoso “Proletários do mundo, uni-vos!”, pois, se o capitalismo é uma sociedade alienante, e a alienação fosse como uma peste que a todos atinge, como fazer para que os alienados se desalienem? No pior dos casos, numa sociedade capitalista completamente alienante o que teríamos é uma população de zumbis. Mas, paradoxalmente, é essa a imagem que deveríamos fazer da sociedade capitalista e de todos os seus habitantes — vocês leitores e eu incluídos — caso Althusser estivesse estado certo. Para ele, a ideologia é uma estrutura eterna que se impõe em todas as sociedades, da qual estrutura os indivíduos não têm a menor consciência. Daí por que a chama de “estrutura inconsciente”. Isso traz uma série de problemas óbvios, pois: como assim ele, Althusser, ou seja, é consciente de tal estrutura? Por aí começam os problemas.
Alguma coisa ele, Althusser, tinha que o resto dos mortais não tinha! Não está claro nos textos de Althusser — pelo menos nos que eu li — como alguém seria capaz de superar tal estado de inconsciência. Mas como a ideologia é uma estrutura eterna, o próprio Marx deve ter passado por esse estado de inconsciência. Mas volta a pergunta: como ele, Marx, saiu desse estado de inconsciência ideológica? Se Hegel o tirou da sua inconsciência ideológica — assim como Hume tirou Kant do seu adormecimento dogmático — quem tirou Hegel da sua?
A pergunta, naturalmente, não faz o menor sentido. Se Einstein, Euclides e Newton, não importam quem nem de que época, estavam sujeitos à estrutura ideológica eterna, como conseguiram produzir o que produziram? Como conseguiram fazer ciência? É possível que a resposta seja: “eles não fizeram ciência social, a ideologia não permite entender é as relações sociais. O ideológico não afeta a inteligência nas ciências formais e naturais”. Mas se isso for assim, como, então, Adam Smith, Hegel e o próprio Marx conseguiram conhecer algo da realidade social?
Althusser dividia a humanidade entre ideológicos e cientistas. Ideológicos éramos todos nós. Cientistas, ele e os althusserianos! Se isto fosse verdade, então, já que a incompetência para conhecermos a realidade social e histórica seria distribuída eqüitativamente entre todos os seres humanos — por estarmos sob o poder eterno da ideologia —, sem dúvida que a luz que teria iluminado nosso caminho teria vindo de são Marx, com a ajuda do apóstolo Althusser, claro. De certo, todos nós, seres humanos, marxistas e não marxistas, se o apóstolo Althusser tivesse tido razão nos seus desvarios, não passaríamos de um bando de imbecis. Talvez seja por isso que o próprio Marx não era marxista.
GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo, é professor da UFG.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |