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Marxismo – Ideologia e verdade

Quando para julgar e avaliar as coisas devemos partir de uma determinada ideologia, a verdade é sempre a vítima

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS

O problema da ideologia me acompanha desde a época da graduação. E foi sobre ideologia minha monografia de final de curso. Aqueles eram outros tempos e é difícil ter uma idéia do ambiente político que se vivia na América Latina e no mundo todo naqueles anos. As tensões entre os países capitalistas e os socialistas aumentavam e se vivia sob constante ameaça de um conflito nuclear. Nessa época, tudo estava em jogo. As ditaduras nas Américas do Sul e Central, nos anos 60 e 70, não podem ser explicadas fora desse contexto. As universidades sofriam o peso do controle dos seus cursos assim como as pressões sobre o que se podia e não se podia ensinar. Alguns autores eram proibidos e muitos cursos da área de humanas foram fechados. Os meios de comunicação eram asfixiados pela mordaça da censura e resultava muito difícil ler nos jornais editoriais ou análises conjunturais escritos de forma isenta. Como na guerra, uma das primeiras vítimas era a verdade.

Foi esse ambiente de controle e manipulação das informações que motivou meu interesse e minhas primeiras pesquisas sobre ideologia. Não preciso dizer que essa preocupação me levou à leitura de Marx — leitura sistemática, disciplinada e exaustiva, devo dizer. Queria entender o porquê de tudo isso de uma maneira sistemática, científica. Houve, porém, uma frustração inicial. Dos meus colegas, a maioria marxistas e muitos deles militantes — alguns na clandestinidade —, ouvia coisas que eu acreditava serem verdadeiros absurdos sobre ideologia e outros assuntos relacionados à teoria de Marx. O que mais chamava minha atenção era a firmeza e a falta de base com que diziam tais coisas. E o surpreendente era que muitos desses disparates seriam “ortodoxia marxista”. Havia uma enorme distância, no entanto, entre o que eu lera em Marx e o que eles afirmavam ser pensamento marxista. Lembro-me que eu os forçava a discutir comigo e a fornecer as razões das suas posições. Para minha decepção, só costumavam citar autores ou dispensar minhas argumentações com adjetivos e rótulos. Um autor muito citado por eles era o filósofo francês Louis Althusser — o filósofo marxista europeu de moda nos anos 70 na América Latina. Como Althusser era um pensador de renome mundial, não me passava pela cabeça que ele atribuísse a Marx teses que eu achava completamente alheias ao que tinha lido no filósofo alemão. (Muito tempo depois, e por própria confissão do Althusser numa autobiografia que só saiu postumamente, vi confirmadas minhas suspeitas: ele reconhece que lera um pouco de Marx e inventara o resto!) De qualquer forma, muito me decepcionou a atitude dogmática e irracional dos meus colegas e correligionários — digo “correligionários” porque tanto eles como eu acreditávamos que as análises de Marx sobre o capitalismo estavam fundamentalmente certas. À diferença deles, no entanto, eu tinha lido Marx e aceitava na possibilidade de ele ter errado, o que para meus colegas parecia uma impossibilidade absoluta.

Lembro-me que eu podia debater com pessoas de direita. Mas nem elas, nem eu, amparávamos nossas teses em autores. Defendíamos nossas posições com base nos fatos e nas nossas próprias análises dos acontecimentos que estávamos vivendo. Com os marxistas, não; com eles não se tratava de se isto ou aquilo era verdade e por que, mas que autor marxista disse tal coisa e em que obra. Sem tal referência, o assunto estava encerrado.

Naquela época — fim dos anos 70 — era costume considerar os escritos de Lênin como um desenvolvimento das teses de Marx. Li dele Materialismo e Empiriocriticismo numa época em que já tinha feito várias leituras na filosofia das ciências. Vi em Lênin a mesma virulência que encontrara na Ideologia Alemã de Marx e Engels. O estilo polêmico deles parece ter influenciado poderosamente muitos dos seus seguidores e, certamente, de muitos militantes dos partidos de esquerda que conheci. Uma pena, porque a argumentação deu lugar às diatribes, ao patrulhamento ideológico e ao moralismo e ao messianismo de esquerda. Para um seguidor de Marx, Engels e Lênin, por exemplo, era inadmissível dizer publicamente que eles erraram nesta ou naquela análise, nesta ou naquela tese, por mais equivocada ou estapafúrdia que essa análise e essa tese possam parecer. Por exemplo, a tese de Marx de que na sociedade comunista posso ser pescador de manhã e caçador à tarde sempre me resultou inaceitável — mesmo que a interpretássemos no mais metafórico dos sentidos. É inaceitável porque só é verdade para uma comunidade de pescadores e caçadores altamente especializados. E a tese de Lênin de que a verdade absoluta é a somat das verdades relativas é francamente ridícula. Mas dizer isso naquela época era motivo suficiente para ser tachado de reacionário, um dos piores crimes — ou, melhor, pecado — que um marxista poderia cometer.

E é aí que está o problema. O marxismo tornou-se uma religião, os marxistas, uma seita. Havia a seita dos simpatizantes da União Soviética, a seita dos maoistas e outras muitas. Cada qual apropriando-se de São Marx e São Lênin à sua maneira. Lamentavelmente, esse marxismo dogmático se espalhou como fogo em milharal seco.

Com o passar dos anos, o fim das ditaduras latino-americanas e o fim da União Soviética e o bloco dos países socialistas, os autores marxistas passaram a ser publicados e lidos livremente. Na minha época de estudante de graduação era difícil achar alguém carregando por aí um texto de Marx ou de Lênin. Corria-se o risco de ser preso. Hoje, a realidade é outra. Marx não só é publicado, lido e comentado como uma quantidade enorme de textos didáticos têm uma clara orientação marxista. O grave é que isto último tem acontecido em detrimento da verdade. Percebi isso folheando os livros de texto dos meus filhos e quando, o ano passado, a pedido da Secretaria Estadual de Educação, analisei inúmeros textos didáticos e paradidáticos da área de filosofia. Se pelo menos o que Marx escreveu fosse explicado ou reproduzido fielmente… mas não é isso que ocorre. O que “de melhor” existe e continua sendo publicado como livros de texto sobre ideologia e filosofia, por exemplo, é de arrepiar. Textos e livros de texto de autores de orientação marxista, que contêm não só erros graves mas verdadeiros atentados à inteligência, continuam a ser publicados, vendidos e a ser indicados pelas escolas sem ninguém se importar e como se nada grave estivesse acontecendo. Mas está, e as vítimas são a verdade, por um lado, e os jovens que têm suas mentes deturpadas, por outro. Se já é grave que um grupo qualquer se arrogue o direito exclusivo de posse da verdade, que ela vire monopólio oficial é um desastre.


Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

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Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Enquanto isso na academia brasileira a baixaria marxista permanece, se você não for filiado ao PT, ao Psol, ao Pc ou qualquer porcaria de partido de esquerda, esqueça a academia ou entra na fila que quem sabe um dia pela obra do espírito santo você concluirá sua pós graduação para depois quem sabe se tornar um professor, mas se você não for marxista, esqueço pois você será taxado como um incoveniente, como o autor trata da burrice marxista latino americana. Eu não faço o L e viva Rawls, Freud e Lacan,a meu ver defensores da liberdade

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