por Severino Ngoenha e Carlos Carvalho
Nos seus diálogos tardios, Timeu e Crítias, Platão (428-347 a.) faz referência à destruição de uma brilhante civilização chamada Atlântida (filha de Atlas) – algures entre o mediterrâneo e o Atlântico – que teria sido, juntamente com os seus habitantes, engolida pelo oceano. Atlântida é apresentada pelo fundador da academus (academia) como a réplica perfeita do paradisíaco jardim do Éden (habitado por um povo – os atlantes – com uma moral elevada e regido por leis justas) mas, como no vétero testamentário bíblico, também na narrativa de Crítias, retomada por Platão, a mesma adâmica ganância degenerativa que levou Yavé a expulsar Adão e Eva, também forçou Zeus a ordenar a destruição da Atlântida por um tsunami.
O relato desta perda é enquadrado em uma suposta tradição egípcia, reportada por Solon, depois de uma visita que o legislador helénico fizera à terra dos faraós, cuja negritude (Cheik Anta Diop, Nações Negras e Cultura) apesar de confirmada pelas escavações arqueológicas foi deliberadamente escondida pelos egiptólogos ( Carta de F. Champollion ao seu irmão) para não pôr causa a pretensa primazia histórica e a superioridade do ocidente no colonial século XIX.
Num craveiriano Karingana Wa Karingana, o sofista Crítias (diálogos de Timeu) a pedido de Hermócrates tocozela (conta) a Sócrates a história de Atlantida: eu ouvi meu avô contar essa história, que ele ouvira de Solon, que por sua vez lhe tinha sido contada por sacerdotes egípcios…
A existência histórica de Atlântida tem estado no centro de acérrimas disputas interpretativas mas, ao que tudo indica, ela resulta de uma construção literária do fundador da academia, como já defendia o seu discípulo Aristóteles; trata-se de uma alegoria contra a plutocracia da Atenas do seu tempo, que contrastava com a sua Kallipólis (cidade ideal) governada por um rei filósofo (com aptidão para o conhecimento) e orientada na busca da maior de todas as virtudes, a dikaiosyne (justiça). No entanto, a recepção da lenda foi historiada e usada, metaforicamente, quer para denunciar “as cavernas” (outro mito de Platão) de regimes despóticos e degradantes, quer para, republicanamente (Politeia), lhes contrapor ideias de sociedades mais justas.
É o empreendimento a que se consagrou Francis Bacon (1561-1626) que, na esteira das primeiras utopias (como género) clássicas (República de Platão, Cidade de Sol de Campanella, Utopos de Thomás Moore) escreveu “A Nova Atlântida” que é ao mesmo tempo uma fábula, uma obra de filosofia política e um texto religioso. O Deus em nome do qual se prega, é a razão do Iluminismo que tinha no conhecimento, na ciência e no progresso, os seus valores sagrados. O espírito das luzes (Iluminismo) é vivamente capturado na fábula inacabada de Bacon e oferece uma visão para uma sociedade impulsionada pela ciência e pelo conhecimento como princípio de condução para melhorar a condição humana de um lado, e uma busca do bem comum almejado por todos os habitantes da cidade, por outro.
Depois de um silêncio milenário, que durou toda a antiguidade (os próprios neoplatónicos consideram o relato um mito), a partir da “descoberta” da América, dos confusos e contraditórios relatos da literatura (proto-antropológica) de viagem, e da prova de que Cristovão Colombo não tinha chegado às índias mas a um novo continente, surgiram hipóteses para explicar a origem dos seus habitantes. A alegoria de Atlântida paulatinamente pegou moda, começou a interpelar os espíritos, acabando por ter contornos de realidade histórica.
O dogma do monogenismo, que impunha que os habitantes do novo mundo tivessem uma origem comum com os povos já conhecidos, trouxe rapidamente a Atlântida para a crista da onda, dando-lhe até um registro histórico; os franceses até criaram a associação dos estudos atlantianos e a revista Atlantis. Depois de ter sido incluída nos cânones das obras sagradas de herméticos, neo-gnósticas, no século XIX a russa Helena Blavatsky incorporou o mito na teosofia e o austríaco Rudolf Steiner na antroposofia.
Mas a localização da cidade perdida de Atlântida continua a apoquentar cientistas, artistas e conspiradores. Existiu? Onde era? Como era?
O fundamentalismo monogenista (que já tinha levado Giordano Bruno à morte pelas mãos da Inquisição) continua a inspirar a caça fantasiosa da cidade perdida, da sua possível localização e a alimentar uma literatura especializada – constituída por historiadores, poetas, caçadores de tesouros – na qual se formulam hipóteses para a relacionar com o povoamento original da América. O imaginário sobre a localização do reino perdido da Atlântida começa então a viajar do Mediterrâneo ao Atlântico (do qual recebera o nome): cordilheira dos Andes, América Central, planalto da Bolívia e volta às Canárias, aos Açores, à Madeira – que alguns estudiosos acreditam que sejam remanescentes montanhosos de uma terra submersa. Em África, depois do Egipto, falou-se dela em Marrocos, depois em Cabo Verde mas nunca ninguém se dignou ou ousou descer mais a Sul.
E se a Atlântida se situasse em Moçambique? – não queremos refazer o atlas, deixamos isso para o livro da sexta classe e para o Ministério da (des)Educação; a nossa questão é apenas retórica. Melhor ainda: e se Moçambique fosse a actualização histórica da Atlântida? Mas qual, a velha e desaparecida por causa das suas incongruências ou a nova – baconiana – inacabada (porque o autor morreu antes de concluir a obra e porque as suas ideias estão ainda por realizar) e por construir?
País nascido no signo da unidade – em contraste com os racismos então vigentes – com vocação para a justiça – defesa dos mais fracos – é hoje um país subaquático, afogado nos idais e kenedis políticos, sociais, económicos e militares. Porém a sua vocação, a vocação de Moçambique, é ser uma Neo-Atlântida. Por isso, apesar dos pesares, continuamos a sonhar com os valores da República (utópica) de Platão e da Nova Atlântida de Bacon: uma evolução do conhecimento, uma terra onde generosidade e iluminação, dignidade e esplendor, piedade e espírito público sejam valores comuns.
Temos no nosso corpo social e sobretudo nas nossas elites político-económicas, o vírus distópico da concupiscência e do solipsismo que estiveram na origem da destruição mítica da primeira Atlântida. Porém, temos também no nosso ADN, nos genes da nossa moçambicanidade, os valores platónicos da República e baconianos (Moçambique o teu nome é liberdade/ milhões de braços, uma só força, reza o nosso hino nacional) da nova Atlântida. Valores e Vírus, Bem e Mal em disputa continuam no mesmo corpo social; umas vezes prevalecendo o vício e outras triunfando a virtude. O desafio da neo/nova – Atlântida/Moçambique não são revoluções, nem a impossível eliminação do ego-centrismo humano, mas a sua contenção através de instituições – independentes, sólidas e fortes – que pautem, mordicus (tenazmente), pela justiça; uma política que faz da sofia (sabedoria) o critério único da escolha dos jurisconsultos, todos; o desenvolvimento do conhecimento (educação, ciência, tecnologia) para melhorar a vida de todos, diminuir a dependência e evitar as ingerências.
Platão ensinou-nos a necessidade de sair da caverna, e a mitologia grega sobre a fénix que ressurge das cinzas; nós temos que inventar uma maneira, toda moçambicana, de reemergir das águas fétidas, podres, em que vivemos.
Existem cidades no mundo que estão debaixo da agua, cidades que estiveram repletas de gente e foram engolidos por desastres naturais e humanos; Baiae (cidade do pecado, que satisfazia os caprichos dos poetas, generais…) na Itália, Thonis-Heracleion (onde supostamente Hércules pisou pela primeira vez a terra dos faraós e por onde passaram os amantes Páris e Helena antes da guerra de Troia) no Egipto, Derwent (submersa propositadamente para a criação do reservatório Ladybower) na Inglaterra, Villa Epecuém (durante 25 anos balneário de Villa Epecuén) na Argentina, Port Royal na Jamaica. Esta última, conhecida no século XVII como a cidade mais malvada da terra, em razão da sua população de piratas e comércio de escravos ressurgiu e é hoje uma tranquila cidade de pescadores. Talvez a eliminação da pirataria (interna e externa) e da escravatura – em todas as suas formas – seja o segredo do ressurgimento…
Severino Ngoenha, Carlos Carvalho