O feminismo geralmente é visto com muitas ressalvas na filosofia africana. Isso porque os questionamentos feministas são tomados como partindo de uma perspectiva colonial, que pressupõe universalismo e não reconhece formas de vida e sociabilidade diferentes. Como consequência dessa caracterização do feminismo como um agente colonizador, “a filosofia africana se mantém largamente silenciosa sobre as questões de gênero, sexo, diferença sexual, e o status social e político das mulheres” (TOIT e COETZEE, 2017, p.333).
Como ensinam Louise du Toite e Azile Coetzee, o núcleo do argumento para rejeição do feminismo estaria em sua “perspectiva ahistórica e universalista sobre mulher e gênero, que tornam-se justoficativa para posições paternalistas e outras formas de distorção na interpretação de pensadoras feminista vis-à-vis das sociedades africanas (…) as agendas feministas tomam uma direção neocolonial e um caminho racista, suprimindo o entendimento indígena e suas práticas de modo injustificado”( TOIT e COETZEE, 2017,p.334).
Essas objeções não deveriam significar uma acomodação em posições de descolonização que não questionam as opressões de sexo e gênero. Ainda que a filosofia africana tenha repetido a estruturação masculina de seu cânone e departamentos, é preciso redescrever e recontextualizar o questionamento dos prejuízos causados pela modernidade/colonialidade imposta, sem cair numa nostalgia e celebração acrítica do tradicional.
A “metafísica do gênero”, que toma como universal as relações de opressão entre masculino e feminino, homem e mulher, tem sido o ponto de partida de muitas das críticas e redescrições do feminismo por autoras africanas. Diversos autores da filosofia africana defendem que na África sub-sahariana existe “uma ordem fluída/holística/ não-dicotômica onde a identidade não é construída pela exclusão do que é outro, mas em relação com aquilo que é outro” (TOIT e COETZEE, p.341).
Nesse sentido, a obra da filósofa nigeriana Oyèronke Oyĕwùmí A invenção da mulher procura mostrar que na sociedade yoruba não existem gêneros hierarquizados como nas perspectivas ocidentais, mas relações baseadas em perspectivas não-dicotômicas, valorizando a senioridade como princípio de organização.
Os textos sobre filosofia africana são ainda escassos, por isso, muitas vezes uma ou outra obra que está acessível em português se transforma em um ponto de referência inquestionável para descrições (muitas vezes expandidas, como fazendo referência a todo continente). Na filosofia precisamos ir além da descrição e promover o debate, o jogo de pedir e dar razões. Neste sentido, considerando que a obra de Oyèronke Oyĕwùmí tem sido uma referência inicial para a aproximação sobre os debates de gênero em África e que existem poucos textos de outras autoras que com ela debatem, trago aqui a tradução (sem notas, “selvagem” e para uso didático) de uma secção do artigo “Feminismo(s) e Opressão: Repensando gênero em uma perspectiva yoruba” (OYELEYE, Olayinka. Feminism (s) and Oppression: Rethinking Gender from a Yoruba Perspective. In: The Palgrave Handbook of African Philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017. p. 349-369.). Este trecho sintetiza as objeções de Olayinka Oyeleye quanto à existência do conceito de gênero na sociedade yoruba. No artigo Oyeleye questiona se a existência de gênero necessariamente precede a opressão.
Segue o texto de Oyeleye:
1. A performatividade de “Oko” e “Aya” nas sociedades tradicionais iorubás
Oyewumi defende, como uma significativo sustentáculo em sua tese, que oko e aya são melhor traduzidos como “insider” e “outsider” em oposição a “marido” e “esposa” porque todos os membros de uma linhagem, como omo-ile (possuidor da linhagem), ocupavam a posição de oko em relação a pessoas de fora ou a qualquer aya que nela é recebido. O oko inclui, portanto, machos e fêmeas da linhagem. A categoria aya é, no entanto, limitada às fêmeas anatômicas, enquanto oko pode ser do sexo masculino ou feminino dentro da linhagem. Para além da linhagem, no entanto, este não era o caso. Os devotos dos Òrìsà (deuses / deusas) eram referidos como aya de um Òrìsà particular a quem eram devotados. Como exemplo, os adoradores masculinos e femininos da divindade Xango são todos referidos como sendo as esposas de Sango. Oyewumi descreve esse relacionamento como sendo de propriedade / associação.
A implicação disso é que oko e aya são papéis performativos que indicam propriedade e filiação. O oko aqui é o dono e o aya é o membro. O oko, incluindo as fêmeas anatômicas, desempenha o papel do dono, e o aya permanece um mero membro. Nesta relação, o oko é superior e dominante, e o aya é inferior e subordinado. Assim como as divindades são maiores e superiores aos seus devotos, o oko enquanto linhagem é superior ao aya. Os devotos estão sujeitos à sua divindade, assim como o aya está sujeito ao seu oko. A divindade é o “um” e os devotos o “outro”. Por outro lado, o oko como linhagem é o “um” e o “aya” o outro inferior. Isto é evidente no ditado, “Sango l’oko Oya” (Sango é o oko de Oya), usado para indicar superioridade. A masculinidade da dominação e a feminilidade da subordinação estão claramente em jogo aqui. Oko é uma categoria masculina óbvia, independentemente dos corpos que desempenham os papéis. O gênero não está no corpo desempenhando o(s) papel (is); gênero está no(s) papel(is) que está(ão) sendo executado(s).
2. A Implicação Gênero biológico em relação ao Oriki como nome Atributivo
De acordo com Oyewumi, em Yorubaland “A maioria dos nomes e todos os pronomes não são atribuídos a partir do gênero”. Assim como em relação a oko e a aya discutidos acima, para Oyewumi, os nomes iorubás parecem sublinhar sua tese sobre um contexto social não-gendrificado. Vamos resumidamente examinar a dinâmica de nomenclatura iorubá. Para os iorubás a nomeação de uma criança, tanto quanto os nomes dados, é um evento social crucial. De acordo com Samuel Johnson, em The History of the Yorubas, “Existem três conjuntos de nomes que uma criança pode ter, embora nem todas as crianças tenham os três; um pelo menos será inaplicável.
1. Amutorunwa, ou seja, o nome com o qual a criança nasce.
2. Abiso, ou seja, o nome do batismo.
3. Oriki, isto é, o cognome ou nome atributivo.
Amutorunwa
O nome com o qual uma criança nasce é expressivo de alguma circunstância particular de seu nascimento. Os gêmeos são bons exemplos disso, porqu, independentemente de outros nomes que possam ser dados, eles são chamados de Taye (literalmente, To aye wo – seja o primeiro a provar o mundo) e Kehinde (aquele/a que fica para trás). Outros nomes nesta categoria incluem Ige (uma criança nascida de uma violação) e Abosede (uma criança nascida no início da semana).
Abiso
Para os iorubás, Ile la wo Ka to s’omo loruko (o estado ou a situação da casa inicia a nomeação de uma criança). Assim, os iorubás não nomeiam uma criança arbitrariamente; nomear é sempre a consequência de um propósito definido. Esses nomes, de acordo com Johnson, são sempre significantes de algo para a própria criança ou para a família.
Oriki
Oriki é um nome atributivo que expressa o que a criança é ou espera se tornar. Se um homem, é sempre expressivo de algo heróico, corajoso e forte; se é mulher, é um termo carinhoso ou de louvor. Tais qualidades superiores de bravura e força são frequentemente vinculados aos traços físicos associados ao corpo masculino. Diametralmente opostos a estes e associados ao feminino existem qualidades indicativas de docilidade. Exemplos de nomes atributivos masculinos incluem;
Ajagbe – aquele que advém depois de uma conquista;
Ajani – aquele que se conserva depois de uma luta;
Alabi ou Alade – um homem nascido após vários nascimentos femininos.
A implicação disso é que esta é uma sociedade patrifocal (centrada no patriarca), os iorubás atribuem muita importância a uma criança do sexo masculino, na medida em que uma família é renovada apenas por ter filhos do sexo masculino, e uma criança do sexo masculino é celebrada após vários partos femininos. Nomes atributivos femininos incluem:
Amoke – uma criança para conhecer e acariciar.
Awero – uma criança a ser lavada e adornada.
Adunni – uma criança docemente abrigada.
Consequentemente, força, bravura, heroísmo são atribuídos à criança do sexo masculino, e afeição, emoção ligadas às mulheres. Isso fundamenta o gênero em nomes iorubás, negando a reinvindicação de Oyewumi.
3. Senioridade como marcador de opressão
Oyewumi enfatiza a senioridade como o princípio organizacional em oposição ao gênero. Ela argumenta que este é o vocabulário da cultura e a linguagem do status. Isto é evidente na análise de oko e aya, agbo ile (agregado familiar) e assim por diante. Oyewumi brinca com a linguagem de maneira sutil, especialmente ao analisar a relação de forasteiro/interno das fêmeas anatômicas como “oko” e seus papéis como seniores da futura esposa. Este uso sutil da linguagem pode ser visto no uso da palavra “desvantagem”:
Enquanto ana-fêmeas juntam-se a uma linhagem como aya estavam em desvantagem, outras ana-fêmeas que eram parte da linhagem por nascimento não sofrem com tal situação. Portanto, seria incorreto dizer que dentro da linhagem as fêmeas anatômicas eram subordinadas porque eram fêmeas anatomicamente. Apenas as esposas que entravam através do casamento eram vistas como uma pessoa de fora (outsider) e eram subordinadas a ọkọ como insiders. Ọkọ era composto de ọmọ-ile, ambos ana-machos e ana-fêmeas, incluindo criaturas nascidas antes da entrada na linhagem de um aya particular. Em certo sentido, aya perdeu sua idade cronológica e linhagem incorporado como “recém-nascido”.
É neste exato ponto de entrada na linhagem que a fêmea, vindo de sua própria linhagem como um omo-ile, com a posição privilegiada de oko, é transformada em uma “mulher” na linhagem onde ela é vista como uma pessoa de fora (outsider). E como a pessoa de fora, ela se torna gendrificada como o “outro” e, portanto, inferior dentro da dinâmica da masculina de dominação inerente ao relacionamento dela com o oko.
Após a celebração do casamento, após os rituais necessários de ablução, o aya é conduzido para o apartamento da dona da casa, de onde ela se torna, segundo Johnson, um preso daquela casa por toda a vida. “Interno” aqui tem um duplo significado interessante: a aya se torna tanto um ocupante da casa quanto uma pessoa confinada. Ela literalmente se torna uma prisioneira em uma casa onde nem a morte de seu cônjuge poderia libertá-la! Ela é, após a morte do cônjuge, automaticamente herdada por outro macho na linhagem do oko. De acordo com Oyewumi, até mesmo as fêmeas anatômicas da linhagem do oko poderiam herdar a aya com a morte de seu parceiro conjugal, enquanto os privilégios sexuais eram então transferidos para sua própria descendência ana-masculina, se necessário. A aya se torna um objeto a ser herdado, embora sua herança seja feita com o seu consentimento, mas é essa herança ou o confinamento ao celibato para o resto da vida.
Na visão de Bakare-Yusuf,
“Oyewumi falha ao não levar a sério a natureza entrelaçada da dinâmica do poder, o que significa que ela não pode explicar a complexidade e as nuances da senioridade como essa realmente opera no contexto Yoruba. Por exemplo, ela não pode discutir o fato de que a ideologia da senioridade é frequentemente usada como uma forma de mascarar outros tipos de relacionamento de poder. É nesse sentido que sua teorização da senioridade pode ser vista como perturbadoramente ingênua e politicamente perigosa. O vocabulário da senioridade muitas vezes se torna a própria forma na qual o abuso sexual, familiar (especialmente para a aya /esposa em uma linhagem) e a violência simbólica são expressas”.
A senioridade, nesse sentido, deixa assim de ser o vocabulário da cultura e da linguagem do status, como afirma Oyewumi, para ser, nas palavras de Bakare-Yusuf, uma linguagem de poder e, portanto, de opressão. Há muitas outras questões além do gênero que devem preocupar teóricas feministas ou acadêmicas feministas africanas, como é o caso, mesmo quando essa pertence ao sexo feminino: os costumes da viuvez, como discutido acima, mutilação genital feminina, dote ou preço da noiva, para mencionar alguns.
OYELEYE, Olayinka. Feminism (s) and Oppression: Rethinking Gender from a Yoruba Perspective. In: The Palgrave Handbook of African Philosophy. Palgrave Macmillan, New York, 2017. p.362-365.