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O ABC de Gilberto Mendonça Teles

Selo GMT²
Selo em homenagem a Gilberto Mendonça Teles nos oitenta anos do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás, do qual foi presidente.

Há tempos pedi para que meu amigo Gilberto Mendonça Teles me concedesse uma entrevista. De início ele ficou um pouco reticente, já que estava pensando em organizar e publicar todas as entrevistas que concedeu e não mais aceitar convites desse tipo. Insisti um pouco, explicando que queria fazer uma entrevista na forma de Abecedário, de modo semelhante a uma longa entrevista que o filósofo francês Gilles Deleuze concedeu, tomando por mote para sua fala uma palavra para cada letra do alfabeto. Deleuze se dirigia ao conceito, buscando apreender o sentido. O que faria um poeta? Gilberto gostou da ideia e a coisa virou, passou a me perguntar: e aí, quando vamos fazer a entrevista?

Eu, preso as coisas de Doutorando adiava, queria gravar em vídeo, colocava reticências. Desisti da ideia de filmagem, não tinha condições de executá-la com qualidade. Enfim, lhe entreguei uma lista de palavras como mote da entrevista-escrita do Abecedário no começo de 2014. Em setembro Gilberto terminou a longa tarefa e o resultado é muito interessante, tanto que quero fazer dele um pequeno livro ainda este ano. O livro com as entrevistas de GMT deve sair em breve e vai ter dois volumes. “A entrevista cadmeana” também vai estar lá, fechando o segundo volume. É aguardar.

Por hora, para aguçar a curiosidade, deixo aqui as três primeiras letras do “ABC do GMT”: Alfabeto, Brasil e Camões.

ALFABETO – Há quem diga que o Alfabeto foi inventado por Orfeu, antes de Homero; outros o atribuem a Palamedes, primo de Ulisses que o assassinou por inveja da sua inteligência inventiva; e Platão, no Fedro [274c-276c] afirma que foi o deus Teuth que o imaginou para a felicidade dos homens. Isso no período arcaico-clássico dos gregos. Modernamente ninguém cuida disso e trata desde cedo de aprendê-lo, de pronunciar bem as suas letras, de escrevê-las legíveis e de acordo com as várias políticas ortográficas de gramáticos e “filólogos” que pensam ganhar dinheiro à custa dessas reformas periódicas… num país como o Brasil, onde milhões de pessoas adultas “preferem” viver no analfabetismo, assinando a rogo ou – o que é muito comum – aprendendo apenas a rabiscar o seu nome para fazer jus ao direito de votar em pessoas que, no fundo, são culturalmente analfabetas. O alfabeto deve sempre ser lido como um alfa-aberto, uma abertura que, a partir da primeira letra, o A de um (“A ali como um álibis”), o sujeito vai tendo a percepção de que as outras letras vão se juntando em sílabas, em palavras, em frases, em discursos – horizontal e vertical – que lhe abrem as portas e as janelas do vasto mundo, como no verso de Drummond. O alfabeto é a maior redução poética que o homem faz com a linguagem: ele conota o universo e o mais além. Sobre o Alfabeto lê-se no Dicionário do loroteiro, de Pitigrilli, que se trata de uma invenção genial do fenício Cadmo, acrescentando-se que “O alfabeto de Cadmo constava de dezesseis letras. Seria interessante calcular quantas tolices se escrevem todos os dias, com as oito letras que lhe acrescentaram os modernos.”

BRASIL – Para o escrivão da armada que o “descobriu”, ele é uma terra “mui chã em que se plantando tudo dá”. Pouco depois o primeiro historiador que veio de Portugal o viu como uma forma de harpa, o que explica o gosto pela música popular, o número exagerado de cantores sertanejos (em Goiás) e a propaganda danada da mídia global que luta por impor padrões de péssimo gosto musical. A imagem da letra parnasiana do Hino Nacional o vê claramente visto no mapa como ”florão da América”. A beleza maior do Brasil é que tudo por aqui nos leva à megalomania do ufanismo, como no livro de 1900, quando o seu autor viu tudo como o maior do mundo. O austríaco que fugiu do nazismo o viu na época de Getúlio como o “país do futuro” – e este tem sido o nosso maior problema: “não temos presente, temos futuro”; logo, não temos passado. Um futuro incerto que acaba em todo fim de governo, num porvir que não perde, entretanto, o verde da esperança. O modernismo procura fazer outro retrato do país: Monteiro Lobato e Mário de Andrade puseram o Jeca Tatu jogando futebol com Macunaíma, mas este não “tava nem aí” e descia preguiçoso o rio Araguaia à procura da consciência perdida. A Globo filmou tudo para as suas novelas. Para terminar, repito que o Brasiu [sic] tem mesmo o melhor carnaval e o melhor futebol do mundo, apesar dos alemães. E as “melhores” universidades… pois o Lula em vez de melhorar preferiu duplicar, pelo menos avançamos nas estatísticas.

CAMÕES – Poder-se-ia pensar se o grande épico ocidental teria direito de encabeçar a letra C desta soi-disant alfabetizada entrevista, se não fosse por três grandes álibis que o fazem mais brasileiro que lusitano. Primo: entre os dez mil e tantos versos de Os Lusíadas não esqueceu de citar pelo menos uma vez o nome do Brasil [Cf. X, 63], além de aludir ao nosso “pau vermelho”, tão importante que deu o nome ao país:

Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co pau vermelho nota; [X,140].

imbsabde

Secundum: O seu livro foi a primeira “gramática” no Brasil, fazendo que a maioria dos nossos poetas aprendesse a ler na escola, no “Camões”, razão por que até hoje os poetas, quando o citam / citaram o fazem / fizeram sempre de segunda mão ou só se lembrando dos versos estudados pela análise lógica dos professores de língua portuguesa. Nunca se estudava o lado literário de Camões. Tertio: Como a biografia do Vate é muito imprecisa, o povo do Nordeste criou “parentes” para Camões, como o irmão (Camonge / Bocage); o filho (o mito do menino sabido que, aos doze anos, assombrou os doutores do templo); e até o primo, como o Camongo (“Camões de Goiás”):

Por aqui um camondongo
pediu à musa não mais.
Roeu seu don e num longo
bocejo de Ferrabraz,
se transformou em Camongo,
Camões de roça e quintais.

Conclusio: Apesar de Cervantes não ter aparentemente nada com o Brasil (em que pese o lado quixotesco dos governantes), o seu nome começa, para este abecedário, com a letra C. Ademais há semelhança na vida e na obra dos dois escritores: – Camões ficou sem o olho direito; Cervantes sem a mão esquerda; as suas obras apontam ambas para a Península Ibérica, numa polaridade de tragédia e comédia que fecha o século XVI e abre o XVII na direção cultural da modernidade.
Em Camões e a poesia brasileira [Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 2001, 5ª edição], escrevi que “A relação cultural das duas obras nos leva a uma comparação entre os dois autores: é, por um lado, como se Camões tivesse um olho fechado para o passado, de onde retirou o herói adequado à ação presente de seu poema, e tivesse o outro, o esquerdo, bem aberto (embora imerso em “vil tristeza”) para a esperança com que começou a narrativa dos povos lusíadas; e é, por outro lado, como se Cervantes alisasse com a mão direita os tempos antigos da cavalaria e, com a esquerda, ferida, fustigasse a sociedade espanhola que teimava na permanência de valores morais e culturais já perfeitamente anquilosados no seu tempo. Portugal e Espanha, depois do período áureo dos descobrimentos, encontram-se no fim do século XVI com os problemas da colonização e, sobretudo, com os seus próprios problemas econômicos e políticos. As duas obras são signos vivos dessa época: Os Lusíadas se transformaram em símbolo de luta contra o invasor espanhol e constituem, portanto, o seu modelo de esperança; e o D. Quixote, à medida que começa a ser entendido mais profundamente, em que a cavalaria do passado sublinha o sonho grandioso de Carlos V, passou a ser lido como símbolo de uma grande ironia e será visto como instrumento de corrosão e de sátira cultural e política. Para comprovar a aproximação das duas obras, como expressões não apenas de dois povos, mas de toda a Península, valho-me do pensamento de Ramiro de Maeztú para quem o leitor tem de habituar-se “a ver os Lusíadas e o Quixote [sic] como as duas partes de um só livro escrito por dois homens, apesar das suas disparidades aparentes: – epopéia e novela; verso e prosa; entusiasmo e ironia […]. Onde acabam Os Lusíadas […] começa o D. Quixote […]. Sem Os Lusíadas não se pode entender o livro de Cervantes”.

Gilberto Mendonça Teles é de Goiás. Reside no Rio de Janeiro há 42 anos. Professor Emérito / Titular da PUC-Rio e da UFG. Honoris Causa da U.F. do Ceará e da PUC de Goiás. Professor aposentado da UFRJ e da UFF. Lecionou no Uruguai e nas universidades de Portugal (Lisboa), França (Rennes e Nantes), Estados Unidos (Chicago) e Espanha (Salamanca). Poeta e crítico. Conferencista em várias universidades, nacionais e estrangeiras.

Marcos Carvalho Lopes

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