Pela sua inserção única no ser, o filósofo é um criador de mundos e, portanto, um inventor de línguas
ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

Desde Tales, os filósofos mostraram ter as mais diversas preocupações. Tantas que tornam impossível definir a filosofia pelo seu conteúdo temático ou problemático. Não é pelos mesmos assuntos ou pelos mesmos problemas que os filósofos se interessam. A história da filosofia mostra isso. Os temas e os problemas são os mais díspares. Isso se mostra, também, no estilo que os filósofos adotam para escrever seus textos. Em alguns casos, os problemas que os filósofos querem resolver são novos, em outros, são muito antigos. Neste último caso, a compreensão dos seus textos pode exigir um conhecimento prévio do que fora escrito por pensadores muito afastados no tempo. O que pode exigir um alto grau de especialização assim como o conhecimento das línguas em que aqueles antigos textos foram escritos.
A tradução de uma língua para outra já representa, por si só, um problema. Nem toda língua possui, por exemplo, todos os substantivos de uma outra qualquer. E os substantivos comuns são, talvez, as palavras menos problemáticas das línguas. A dificuldade pode estar na própria estrutura delas. Se formos começar pelo grego antigo, por exemplo, veremos que línguas modernas, como o português, o espanhol ou o inglês, não possuem todos os tempos verbais que aquela tinha. As línguas mencionadas não possuem um tempo verbal do grego antigo e que pode soar para nós muito estranho: o particípio futuro — particípio futuro que, aliás, tem gênero e número, como os outros particípios do grego clássico. O grego também possui um infinitivo do passado e do futuro, assim como do presente.
Além de certos atributos internos (estruturais) que tornam as línguas únicas, há questões culturais, sociais e até econômicas que forçam as línguas a poder dizer certas coisas e as impedem de dizer outras. Quando explico aos meus alunos sobre a dificuldade de tradução da palavra saudade, muitos simplesmente não conseguem acreditar que outras pessoas ‘não tenham esse sentimento’. Mas, é um ‘sentimento’? O que denota, que designa, propriamente, a palavra ‘saudade’? Pense o leitor se esta definição do dicionário Houaiss o satisfaz: “sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável.” Será que o leitor já pensou a saudade como sendo um sentimento “mais ou menos melancólico” e, ainda mais, “de incompletude”? Será que o próprio leitor já usou alguma vez a palavra “incompletude” para se referir a algo, não digamos ao significado de ‘saudade’? A verdade é que podemos ter um sentimento melancólico com respeito a alguém, e dizemos que ‘sentimos’ saudade desse alguém. Mas não é assim que se fala a respeito de, por exemplo, pratos de comida. Tenho a impressão de nunca ter escutado “sinto saudade de feijoada”, mas, “tenho saudade de feijoada”. Mas por que, num caso, a tendência é a usar o verbo sentir e no outro o verbo ter? Porque, claro, há uma diferença semântica importante entre os dois, por querer o falante dizer duas coisas diversas. Certamente, quando temos saudade de pratos de comida não estaríamos inclinados a usar o verbo “sentir”. O verbo ter, no caso do exemplo, talvez exprima melhor um desejo, mais um “querer” (“quero feijoada”), isto é, do que um “sentir”. Em espanhol diríamos “tengo ganas de ‘feijoada’”. E “tener ganas”, em espanhol, já não traduz o mesmo que “ter ganas” em português. Não há falante da língua portuguesa, suponho, que considere equivalentes “ter saudade” e “ter ganas”. Temos aqui um exemplo de duas línguas muito próximas. Nem tudo o que se diz numa, pode se dizer na outra. Pois, como no caso do exemplo, os mundos desses falantes não possuem, nos seus mundos, mundos lingüísticos, os mesmos objetos. Isso indica, claro, que a existência per se dos objetos que uma língua menciona com seus substantivos é algo cultural, e não o resultado de um simples ato ostensivo — um ato de apontar a um objeto fora de nós.
Além disso, existem condições históricas, sociais e econômicas que impedem, numa língua, dizer o que se diz noutra. Outro sentimento que nos parece natural e universal, o ciúme, pode não existir, nem como sentimento, nem, portanto, como palavra, em sociedades cujas relações familiares, ou entre os sexos, sejam completamente diferentes daquelas da sociedade patriarcal, em que existe a obrigatoriedade do amor monogâmico e do amor dos pais por todos os filhos. Naquelas sociedades em que não se reconhece uma mãe, mas todas as mulheres adultas são as mães de todas as crianças, não caberia o sentimento chamado ‘ciúme filial’ de uma criança por uma determinada ‘mãe’. Do mesmo modo, naquelas comunidades em que existia o matrimônio por grupos, uma determinada pessoa não poderia ter ciúmes, no nosso sentido, pelas atitudes de uma outra. Vemos, assim, que ‘ter saudade’ ou ‘ter ciúmes’ encontram seu significado específico em determinadas línguas por essas línguas serem faladas por pessoas de determinadas culturas e condições — significados que não necessariamente devem ser encontrados em palavras de toda e qualquer língua, mesmo que pertençam a um tronco comum, como o espanhol e o português.
Esses são alguns exemplos de por que, numa língua, não podemos dizer tudo o que se diz noutra. O que vale para a linguagem natural vale, neste caso, para a linguagem filosófica. Cada filósofo é filho de sua época e, portanto, partilha de certos valores, está inserido numa determinada formação social e econômica e é condicionado pelos acontecimentos históricos de seu tempo. Além disso, é um indivíduo que não necessariamente deve ver o mundo do modo como o veem seus contemporâneos. Às particularidades do seu tempo devemos somar as de sua individualidade. Assim, pela inserção singular no ser que o rodeia, o filósofo não necessariamente deve falar uma língua comum. Nesse sentido, o filósofo é tanto um criador de mundos como um inventor de línguas.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |