de GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS
O marxismo althusseriano não reproduzia as teses do pensador alemão. Althusser transformara Marx não por incompetência, mas talvez por excesso dela
A filosofia e as ciências, tradicionalmente, têm se preocupado com a verdade. O que guiou os primeiros filósofos foi o conhecimento, isto é, determinar como as coisas, o mundo, a natureza, o cosmo, eram realmente, verdadeiramente. Este desejo de saber e distinguir o verdadeiro do falso caracteriza, sem dúvida, a maioria de pensadores e cientistas.
Assim, quando eu vou a um texto, seja este de quem for — Platão, Aristóteles, Marx —, minha tendência é responder esta simples questão: o que o autor diz é verdadeiro ou não. Sei que muitos já acham suficiente fazer uma certa interpretação — ou “leitura”, como está na moda dizer — dos textos dos filósofos e pensadores. Creio que não tenha sido esse o desejo dos clássicos do pensamento filosófico ocidental ou de algum autor que se respeite. Digo isso como filósofo e como escritor. Pois se eu escrevo para que cada leitor tire uma interpretação que não é compatível com o que estou dizendo e querendo dizer, então, ou eu fracassei como escritor ou ele fracassou como leitor.
Há textos dos filósofos clássicos que dizem claramente o que seus autores mantinham. Mas nem todos os textos são transparentes. Há passagens problemáticas porque, nelas, seus autores não afirmam, mas sugerem como as coisas deveriam ser — e o fazem a partir do que eles gostariam que fossem. Por isso, muitas vezes ficamos na mais absoluta escuridão quando nos defrontamos com trechos que parecem criptogramas escritos para iniciados. Assim, podemos encontrar passagens transparentes, outras não muito claras e, algumas, difíceis ao extremo. Isso reflete o estilo, as intenções, a idiossincrasia e as circunstâncias do autor.
Como tenho dito em outras oportunidades, fiz meu curso de graduação praticamente voltado à compreensão da origem da desigualdade e das injustiças entre os homens. E organizei minhas leituras para entender Marx. Li Marx por conta própria, num grupo de estudos orientado por um professor e acompanhei disciplinas sobre o Capital. Tudo isso antes de ler Althusser — como também tenho dito em outras oportunidades e disse no artigo da última semana.
A leitura de Althusser me deixou surpreso porque vi uma grande distância entre o que Marx defendia e o que Althusser lhe atribuía. Naquela época, ficou claro, para mim, que o marxismo althusseriano não reproduzia as teses do pensador alemão.
Só muito tempo depois soube qual o motivo desse distanciamento. Como não disse isso no artigo da semana passada, vou dizê-lo agora. Althusser transformara Marx não por incompetência, mas talvez por excesso dela. Por ter uma inteligência privilegiada aliada a uma longa história de problemas mentais. Sim, Althusser passara por várias internações, esteve por anos sob tratamento psiquiátrico e fora inclusive submetido a eletrochoques.
A seguinte surpresa veio no ano de 1980, quando li que ele tinha matado sua esposa. Na verdade, a estrangulara. A notícia, lembro-me bem, apareceu na primeira página do jornal. Naquela ocasião não me ocorreu relacionar o uxoricídio à obra. Passaram-se doze anos, se não me engano, e um colega¹ me contou que tinha sido publicada uma autobiografia de Althusser.² (Autobiografia que Althusser quis que só fosse publicada após a sua morte, ocorrida em 1990.)
Corri para comprá-la imediatamente e não conseguia parar de ler. A impressão que eu tivera de Althusser ia mudando à medida que lia o texto. Não sou um especialista em análise literária, mas posso dizer que achei — e acho — sua autobiografia belamente escrita. É, confesso, um texto belo e ao mesmo tempo comovedor. São particularmente impressionantes os trechos em que se refere aos seus problemas mentais, suas depressões, suas internações e o quanto sofria quando era submetido a choques elétricos.
Esse é o drama humano; o que me interessa aqui é a verdade. O que tem tudo isso a ver com filosofia e verdade? Bom, tem muito a ver, pois é aqui que ele conta a verdade sobre seu “conhecimento” filosófico.
Falemos sobre ele. Teve como professores, e examinadores, filósofos franceses muito conhecidos, como Bachelard e Merleau-Ponty. (Diz Althusser que o único curso que seguiu foi o de Merlau-Ponty.) Mas o que realmente interessa aqui é outra coisa, seu estilo de estudar e trabalhar filosoficamente. Vejamos: “Posso lembrar que tanto no exame escrito como no oral tratei a maioria dos assuntos sem conhecê-los bem [meus grifos]. Mas eu sabia “fazer” uma dissertação e disfarçar razoavelmente minhas ignorâncias tratando a priori de qualquer assunto…” [meus grifos]. (p. 145) Esse estilo parece que foi a marca registrada de seu trabalho, pois também confessa que não gostava muito de consultar bibliotecas ou ler como seus colegas e alunos faziam. De fato, Althusser parece gabar-se de ler pouco. Vejamos esta longa declaração: “Evidentemente, minha cultura filosófica dos textos era mais para reduzida. Conhecia bem Descartes, Malebranche, um pouco de Spinoza, nada de Aristóteles, os sofistas, os estóicos, bastante bem Platão, Pascal, nada de Kant, um pouco de Hegel, e enfim certos trechos de Marx lidos muito atentamente.” (p. 149) Lembro aos leitores que no artigo anterior eu disse que para entender Marx não podemos não ter passado por Hegel, e para entender Hegel não poderíamos desconhecer Kant. Os poucos trechos que lera de Marx, mesmo atentamente, tendo lido “um pouco de Hegel” e “nada de Kant” mostram o quanto realmente deve ter entendido, naquela época, de Marx.
Choca que Althusser faça alarde de ter aprendido filosofia “por ouvir dizer”. Não só de amigos e professores, mas dos próprios alunos: “Eu fabricara uma lenda sobre meu modo de ensinar e de saber filosofia, como gostava de repetir, “de ouvir dizer” (…) recolhendo esta ou aquela fórmula captada de passagem, e, por último, graças a meus próprios alunos em suas exposições e dissertações.” (Loc. cit.) Impressiona esta declaração se estamos preocupados com a verdade. Se uma pessoa constrói uma teoria com base no que ouviu de um autor determinado, como dar crédito ao que eventualmente possa vir a propor? Não é a filosofia, em última instância, a busca da verdade? O lugar que acabei de citar continua assim: “Naturalmente, acabei transformando num ponto de honra pretensioso essa forma de “aprender por ouvir dizer”, o que me distinguia singularmente de todos os meus amigos universitários infinitamente mais instruídos do que eu, e o que eu repetia de bom grado, como um paradoxo e uma provocação, para suscitar o espanto, a admiração (!) e a incredulidade de outros, e para meu grande embaraço e orgulho”. (Loc. cit.) (Os grifos são meus, o sinal de admiração é de Althusser.)
Perceba-se que ele reconhece esse sentimento duplo de embaraço e orgulho. E note-se como fala do que considera um “ponto de honra pretensioso”, aprender “por ouvir dizer”, isto é, como algo dito para causar tanto o espanto como a admiração dos demais.
Mas não é só isso. Peço que se leia com cuidado o seguinte trecho: “Mas talvez eu tivesse uma outra capacidade bem minha. A partir de uma simples fórmula, sentia-me capaz (que ilusão!) de reconstituir, se não o pensamento, pelo menos a tendência e a orientação de um autor ou de um livro que não tinha lido [meus grifos].” (Loc. cit.)
Se ele reconhece que fazia isso com outros autores e suas obras, obras e autores que não lera, onde fica, então, a verdade? E que filosofia pode ser essa baseada no “ouvir dizer”? Que método é esse? Se os outros autores escreveram sobre o que viram e refletiram e ele recolhia “de passagem” o que ouvia, que contribuição realmente poderíamos esperar de um “método” semelhante? A própria verdade, objetivo final do filósofo… como fica? (Continuaremos na próxima semana.)
1 O professor Joel Pimentel de Ulhôa.
2 (O Futuro Dura Muito Tempo, São Paulo: Companhia das Letras, 1992).
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |