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O caso Althusser II: As imposturas de um filósofo

Gonçalo Armijos Palácios

Quem, no fundo, é o impostor? O que, reconhecendo-se psicótico, se define como impostor ou o que, apesar dessa confissão, considera aquele um exemplo de equilíbrio intelectual?

Na semana passada, iniciei uma reflexão sobre verdade e filosofia. Decidi começar esta série de artigos tratando de um caso extremo: o de um pensador que chegou a ter renome mundial apresentando teorias “marxistas” que, no fundo, não encontravam sustentação nas teses do próprio Marx. O pensador é o filósofo francês Louis Althusser. Não se trata aqui de acusar Althusser de ter apresentado como de Marx certas teses que não eram do pensador alemão. O caso é que o próprio Althusser reconhece isso numa autobiografia que comecei a analisar na semana passada. 1 Cabe aqui entender o que o levou a isso que ele mesmo chama de “impostura”. Este termo, aliás, é o que ele mesmo usa, várias vezes, para se autodefinir. Num sentido, então, ele se considera um impostor. Desde jovem, diz, tentava imitar seus professores, seus jeitos, sua voz e mesmo sua letra. Queria ser como eles para que eles se identificassem com ele. E, de alguma maneira, Althusser pensa que isso tem a ver com sua própria relação edipiana com sua mãe. Vejamos: “Primeiramente, identifiquei-me com ele [com o professor] pelas razões que acabo de dizer, ligadas à minha própria imagem de mim e à da mãe e, além dela, à imagem do [meu] tio morto…”. (p. 84) Peço atenção para o que segue: “Em realidade, compreendi que ele [o professor] representava uma imagem positiva daquela mãe que eu amava e que me amava, uma pessoa real com quem eu podia realizar aquela “fusão” espiritual que se enquadrava no desejo de minha mãe, mas que seu ser repugnante me proibia”. (Ibid. A ênfase em “repugnante” é de Althusser.)

Não pretendo aqui fazer qualquer avaliação psicológica ou psiquiátrica de Althusser. Penso que ele faz isso muito bem e muito claramente. Estou simplesmente reproduzindo trechos que vão esclarecer teses que, em princípio, seriam puramente filosóficas. Interessa-me analisar suas teses filosóficas de um ponto de vista filosófico, na medida em que isso seja possível, ou, então, mostrar se as teses que deveriam ser substancialmente filosóficas não seriam afirmações sobre sua própria patologia e diriam respeito mais aos seus traumas psíquicos do que à realidade — que é, no fundo, o objeto do filósofo. Pouco depois, Althusser continua: “E efetivamente eu me vi em várias e repetidas ocasiões na mesma situação afetiva e com a mesma impressão afetiva de me comportar diante de meus professores como sendo seu próprio professor, tendo que, se não tudo lhes ensinar, pelo menos me responsabilizar por eles, como se eu tivesse o sentimento muito profundo de ter de controlar, vigiar, censurar, quiçá reger o comportamento de meu pai, sobretudo em relação à minha mãe e minha irmã”. (Ibidem.) Veremos depois que ele faz isso, também, com Marx. O Marx apresentado por Althusser é, no fundo, um Marx censurado, controlado e regido. Regido e controlado no sentido de sofrer alterações e correções profundas. O que Marx não dizia, Althusser, corrigindo-o, lhe fazia dizer.

Disse já anteriormente que foi essa diferença entre o que eu tinha lido em Marx e o que li em Althusser como sendo do filósofo alemão que chamou minha atenção. Li Althusser, como faço com qualquer autor, perguntado-me pela verdade ou falsidade de suas teses. E o que ficou patente quando lia os textos do pensador francês é que desvirtuava as teses de Marx. Só muito tempo depois, só quando li sua autobiografia, é que minhas impressões foram corroboradas pelas próprias confissões do seu autor.

É nos trechos seguintes que o termo “impostura” começa a aparecer, com mais e mais freqüência, para caracterizar o que ele fazia. Continuando a citação anterior, diz Althusser num novo parágrafo: “Infelizmente essa bela construção, em certa medida justa, iria se revelar um tanto unilateral. Com efeito, compreendi, mas muito tarde, que eu negligenciava então o elemento mais importante: meus artifícios, a imitação da voz, dos gestos e da letra, dos circunlóquios e dos tiques de meu professor, que me davam não só um poder sobre ele mas uma existência para mim. Em suma, uma impostura fundamental, esse parecer ser o que eu não podia ser: essa ausência de corpo não apropriado e portanto de meu sexo”. (Ibidem. As ênfases “meus artifícios”, “impostura fundamental”, são de Althusser.) Não tendo estudado psicologia não posso entender o alcance e o significado exato dessas declarações. Mas não pode deixar de ficar claro para qualquer leitor que sua relação, tanto com sua mãe como com o sexo, é doentia. Com efeito, sua primeira crise grave e que o leva a um hospital psiquiátrico e aos primeiros eletrochoques ocorre imediatamente depois de sua primeira relação sexual (que teve lugar aos 29 anos de idade!). O trecho citado continua assim: “Compreendi então (mas tão tarde!) que, assim, eu apenas usava um artifício, exatamente como um “burlador” usa para entrar num estádio (meu pai), para seduzir meu professor e ser amado por ele justamente pelo jogo desses artifícios. O que se pode dizer? Que, não tendo uma existência pessoal, uma existência autêntica, duvidando de mim a ponto de me acreditar insensível, sentindo-me por causa disso incapaz de manter relações afetivas com qualquer pessoa, estava reduzido, para existir, a me fazer amar, e, para amar (pois amar comanda ser amado), reduzido portanto a artifícios de seduções e de imposturas. À sedução pelos desvios dos artifícios e, definitivamente, à impostura”. (Ibid.)

Os fatos que está relacionando têm a ver com um período em que Althusser contava com aproximadamente 18 anos. Mas as “imposturas” que confessa não são, segundo ele mesmo declara, um incidente, não são ocasionais nem a exceção, são a regra de seu modo de ser. Fazem parte de sua personalidade e o acompanharão na vida adulta. São as imposturas que percebi ao ler o que atribuía a Marx, sem suspeitar o porquê, quando li Althusser nos anos 70.

Diz a continuação do trecho anterior — em que, em apenas dois parágrafos, aparece a palavra “impostura” pela quarta vez: “Não existindo realmente, eu era na vida apenas um ser de artifício, um ser de nada, um morto que não podia conseguir amar e ser amado a não ser pelo desvio dos artifícios e das imposturas que tomava emprestado daqueles por quem eu queria ser amado e que tentava amar seduzindo”. (Ibid, p. 84-5)

Imitava os professores, queria ser como eles, ou melhor do que eles, estar sobre eles, como depois “imitaria”, na sua forma particular, o pensamento de Marx. E o imitou tão bem que mesmo hoje, depois de ter reconhecido sua impostura numa obra autobiográfica, ainda há quem o cite como um filósofo que “desenvolveu” o pensamento de Marx. Aqui fica a pergunta, mas de que, no fundo, é a impostura, de quem se sabe psicótico ou de quem o cita como se fosse o mais equilibrado dos pensadores contemporâneos? A quem, afinal, atribuir a impostura? (Continuaremos na próxima semana.)

1 O Futuro Dura Muito Tempo. São Paulo : Companhia das Letras, 1993.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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