Gonçalo Armijos Palácios
Como desmascarar a impostura ilustrada? Talvez só haja um meio: discutir os problemas teóricos defendendo as próprias teses
No artigo da semana passada, vimos alguns trechos nos quais Althusser confessa suas imposturas — fingir o que não era, imitar seus professores nos jeitos, na letra e até na voz, querer ser amado por eles por meio desses artifícios etc. Hoje, veremos mais um desses recursos — plágio.
Quando era aluno da Escola Normal Superior, Althusser conta que tinha um professor que muito admirava, Jean Guitton. Houve dois episódios que ele lembra. No primeiro, Guitton pedira a seus alunos uma dissertação. “Eu não sabia ‘fazer uma dissertação’ — diz — e não sabia grande coisa sobre filosofia…”¹ Fez a dissertação, de qualquer jeito, e o resultado o deixou “arrasado” — obteve apenas três e meio na avaliação. Na segunda ocasião, o mesmo Guitton solicitou “a primeira composição” para ser redigida “numa grande sala de estudos”. O tema era “o real e o fictício”. Althusser conta o que se sucedeu assim: “obstinava inutilmente em tirar de minha cabeça algumas vagas noções, e vi-me novamente perdido”. A solução veio por intermédio de um outro aluno que lhe entregou algumas folhas corrigidas pelo próprio Guitton da turma do ano anterior. Althusser diz que, mesmo envergonhado, pegou o texto e o copiou fazendo algumas alterações mas conservando “o essencial”, ou seja, “as partes, seus temas e a conclusão”. Nesta adaptação, confessa, não só copiou os modos de Guitton como sua letra.
Quando Guitton entregou as composições, elogiou muito a composição de Althusser e lhe dera a maior nota da turma. Vejamos como ele resume tudo isso: “Para mim, eu havia simplesmente recopiado o texto corrigido por Guitton, havia trapaceado, burlado e pilhado seu texto: supremo artifício e impostura para ganhar seus favores. Eu estava encabulado: não era possível que ele não tivesse percebido!” (p. 87)
Pois essa é a mesma pergunta que me fazia sobre seus escritos e sobre os seus seguidores “marxistas”. Como é possível que não tenham percebido, já nos anos 60 e 70, a distância entre o que Marx escrevera e o que Althusser lhe atribuíra. Era mesmo difícil de entender.
Mas é precisamente isso que está em jogo: a relação do filósofo com a verdade e com a realidade. Num sentido, a filosofia não tem objeto. Não tem objeto específico, isto é, já que a realidade toda, e em todas suas formas, pode vir a ser um objeto filosófico.
E por que tudo isto é relevante? Porque a academia filosófica está cheia de comentadores e suas “leituras”. Cada comentador parece acreditar que tem direito a qualquer leitura de qualquer filósofo. Esse é o problema. A quem estão enganando? A muitos, na verdade. Quantos já foram ludibriados por essas imposturas e quantos mais deverão cair vítimas dessa fraude ilustrada? O fato é que Althusser teve grande influência nos anos 60 e 70. E não duvido que seus antigos admiradores o sigam citando como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse matado sua esposa, como se sua loucura não tivesse sido conhecida nem suas confissões publicadas na autobiografia que estamos discutindo.
É muito difícil demonstrar uma fraude. No caso que me ocupa, muito mais difícil, se não impossível, quando seus perpetradores se escondem por trás das salvadoras “leituras”. Isso permite que façam de Aristóteles um Platão e de Platão um Aristóteles. Pois se é verdade que todos temos direito a qualquer leitura e a interpretar um autor ao nosso bel-prazer, então ninguém disse nada ao certo, pois todos dizem tudo, o que no fundo eqüivale a dizer que ninguém diz nada.
Mas neste caso, afortunadamente, temos as confissões do próprio Althusser. Se sua autobiografia não tivesse sido publicada, tudo o que eu concluíra dos seus textos no final dos anos 70 não passaria de uma conjectura. Como poderia provar que ele desvirtuou Marx inventando um Marx muito seu, um Marx que ele mesmo rescrevera? Não poderia, pois, sob a ótica e a tirania das “leituras”, ninguém disse nada já que pode ser “forçado” a dizer tudo. Assim, Marx pode ser lido como defendendo teses idealistas — o Marx inventado por Althusser —, Hobbes converte-se no pai do neoliberalismo e Locke passa a defender a existência de idéias inatas! Sim, tudo é possível se a “teoria” das “leituras” está certa. Afortunadamente, há limites. Neste caso, as declarações e confissões do próprio autor na sua autobiografia. O que está em jogo, lembre-se, é a verdade.
Para, então, nos aprofundarmos mais na verdade sobre o “marxismo” de Althusser, continuemos lendo suas declarações. (Note-se que nos trechos já citados, e nos que continuaremos a reproduzir, um dos termos que mais aparece é “impostura”.)
Refletindo sobre o episódio da composição já mencionada, Althusser diz o seguinte: “Que benefício eu tirava para mim mesmo? Talvez a vantagem de ser colocado mais uma vez à frente de minha turma, de desfrutar enfim da consideração de meus colegas … e de ser aceito na classe. Mas a que preço. Ao preço de uma verdadeira impostura que, desde então, não parou de me atormentar”. (p. 88) Não podia ter parado de atormentá-lo porque tal impostura se repetira novamente. Mantenho que se repetira com Marx, como ele mesmo reconhece e mostrarei posteriormente. Mas retomemos do ponto em que o deixamos: “Já suspeitava de que só conseguia existir à custa de artifícios, de empréstimos que me eram alheios. Entretanto, dessa vez, não mais se tratava de artifícios dos quais podia pelo menos me considerar o hábil autor, mas de uma impostura e de um roubo, que mostravam claramente que eu só podia existir à custa de um verdadeiro embuste sobre minha verdadeira natureza, mediante um furto sem escrúpulos do pensamento, do próprio raciocínio e das fórmulas de meu mestre …”. (p. 88) (As ênfases em “impostura” e “roubo” no original.)
Impressiona a autobiografia de Althusser pelo caráter desencarnado de suas confissões. Delas podemos aprender muito tanto sobre seu autor como sobre o meio universitário, sobre suas farsas e farsantes, sobre todos aqueles que não podem dizer por si mesmos o que pensam e devem se amparar em “leituras” arbitrárias de filósofos que não podem reclamar por estarem mortos há muito tempo ou porque não estão em condições de ler o que se lhes atribui. Sim, há muito disso na academia.
O artifício das intermináveis referências é muito útil para quem quer se passar por “erudito” comentador. Poucos estão em condições — ou têm a paciência — de conferir as fontes. Outro modo de esconder a fraude, num texto “especializado”, é escrever de um jeito que torne impossível a compreensão do que nele está escrito. É muito comum a expressão “não entendi uma palavra, mas parece interessante”! Como desmascarar esses impostores? É mesmo muito difícil, especialmente para quem não é da área.
Althusser conta como aprendeu de seu admirado mestre Guitton “duas virtudes essencialmente universitárias”. Mais tarde, elas fariam “grande parte do meu sucesso”. Vejamos quais são: “primeiro, a mais extrema clareza na escrita, depois, a arte (sempre um artifício) de compor e redigir sobre qualquer assunto, a priori, e, como que por dedução, no vazio, uma dissertação que se sustente e convença”. (p. 88) Das duas “virtudes”, a primeira é que, lamentavelmente, poucos seguem. Mas é a segunda que parece ser o princípio que guia todos os impostores acadêmicos: a priori, podem falar e escrever sobre tudo e sem base. Mas sobre esse assunto ainda temos muito a dizer na próxima semana.
1 O Futuro Dura Muito Tempo. São Paulo : Companhia das letras, 1993, p. 87.
Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |