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O desconseguimento

Ensaio de Severino Ngoenha a Carlos Carvalho

O leitmotiv do Bebedor dos Horizontes, terceiro livro da  trilogia As areias do Imperador de Mia Couto, é de uma evidência – à La Palisse – enganadora. O livro parece tratar dos imbróglios e trafulhices entre zulos, changanas, chopes (…) que no fim do século XIX facilitaram a derrocada ou a pacificação – como os escribas de Mouzinho de Albuquerque  chamaram, mais  com cinismo do que eufemismo – dos últimos nichos de resistência e soberania pré-colonial. Uma hermenêutica mais atenta pode demonstrar que, na verdade, o livro trata dos imbróglios e trafulhices actuais que, por sua vez facilitam, hoje, a derrocada da nossa soberania; o que confirma a sentença  de Gramsci: “a história tem muito a ensinar mas ninguém disposto a aprender dela”.

Por detrás de Ngungunhana, Zixaxa (…), do Limpopo do século XIX – factos já magnificamente tratados no Ualalapi de Ungulani Ba Ka Khosa – o livro invoca, indirectamente, o Moçambique de hoje, recorrendo – estilisticamente – aos paradoxos e incongruências da transição política  de então. Não se trata de um romance histórico, mas de um recurso ao pretérito como forma de trazer a luz, a permanência do passado nas aporias do presente.

Este método tem em Voltaire (primeiro intelectual, segundo o filósofo norte americano Richard Rorty) um dos seus ancestrais mais ilustres.  O seu livro, Le Siècle de Louís XIV, mais do que exaltar o Rei Sol – no reinado do qual o libertino e apóstolo da tolerância Voltaire não quereria ter vivido – é um requisitório crítico contra o reino de Luís XVI, sob o qual o patriarca de Fernet teve que viver. Como  aquele monarca não fosse suficientemente tolerante para aceitar críticas contra o seu Reino e governação, Voltaire viu-se obrigado a recorrer, metaforicamente, a um elogio do absolutista Luís XIV para criticar   o incapaz Luís XVI.

O uso metafórico de figuras do passado, para criticar o poder do dia, foi apreendido e replicado, entre nós, com a exaltação – acrítica e algo excessiva – de Samora Machel nos chapas, nas redes sociais, nos raps. Apesar do reconhecimento e admiração, sinceras, que a figura do marechal suscita, muitos dos discursos retomados (contra a corrupção, o racismo, o tribalismo) soavam mais como críticas ao governo do dia, do que uma nostalgia sincera do Moçambique do tempo de Machel. A prova disso é o ressurgimento actual da figura – suspeita – de Guebuza, que não se deve a nenhuma nostalgia ou reconhecimento mas soa, claramente, como um anátema ao actual consulado. Este nostalgismo sistémico talvez revele um decréscimo constante da estatura intelectual, moral (e até física) das lideranças desde a independência (ou até desde Mondlane!), das suas ambiguidades e falta de sentido histórico ou, na melhor das hipóteses, manifesta o aumento do sentido crítico dos moçambicanos. Em todo o caso, o recurso ao método de crítica indirecta – que em si mesmo denuncia um deficit de tolerância e de democracia – ganhou contornos  artísticos – e clareza – primeiro com os raps de Azagaia e, depois, literário, com a trilogia do Mia.

Imane, a narradora dos episódios da deportação de Ngungunhanane a Portugal, a dada altura sentencia, categórica: os  escritores – ainda que excelentes – criam palavras (o que não é pouco), mas os soberanos (quais demiurgos), com palavras (verbum), dão vida à realidade, criam mundos (verbum/fiat). Samora Machel, arquitecto da nossa independência e utopista – no sentido positivo de Victor Hugo – de um Moçambique unido e próspero,  durante as conversações dos Acordos de Lusaka – antes mesmo de aceder ao trono – teria, num lapsus revelador, pré-anunciado o antiverbo que continua a pairar sobre Moçambique: desconseguir. Mesmo que ele tenha pronunciado esse neologismo imobilizante, temos que  ser indulgentes com ele, tanto mais que o Bebedor dos Horizontes – e a trilogia – não tinham sido ainda escritos e Machel não tinha como saber que os escritores – a quem podíamos juntar os filósofos (Deleuze) – criam palavras mas os soberanos (com a sua voluntas) transmutam palavras (verbum) em realidades, mónadas e mundos (fiat voluntas tuam).

Desde sempre – antes mesmo de nascer como país – Moçambique não cessou de desconseguir. Desconseguimos o socialismo, desconseguimos o desenvolvimento (apesar dos PECs e dos PPIs…), estamos a desconseguir a paz, a democracia, a unidade nacional, a integridade territorial…

Estaremos também a desconseguir a independência? Quarenta e seis anos na vida de um indivíduo é muito tempo; com a nossa média de vida, o tempo transcorrido significa  mais passado sobrevivido, do que futuro a pedalar. Para uma Nação, em contrapartida, quarenta e seis anos representam pouca coisa. Portugal, fundado no século XII, democratizou-se só em 1974 – graças, em parte, às nossas lutas libertárias – e continua, ainda hoje, a ser  o maior exportador de emigrantes pobres de toda a Europa Ocidental. A França – que se quer existente desde Clóvis (séc. V) – está na quinta República (já em crise) desde a Revolução Francesa; o seu código civil é, ainda hoje, em grande parte napoleónico e, ainda mais significativo, continua habitado por uma mistura de colonialismo renitente e de uma xenofobia de extrema direita em ascensão. A Itália, que se refere ao Império Romano – não só na sua história, mas nos nomes das suas instituições, nos lugares simbólicos das suas cidades – é o país Ocidental mais desigual, entre um Norte rico e um Sul pobre, dominado pelas diferentes  máfias, camorras, cosas nostras, Ndranghetas… 

Qual é o parâmetro para medir o desconseguimento: o tempo (Kronos) de vida de um homem ou o tempo (kairos) necessário para a consolidação de uma nação? As duas coisas estão profundamente imbricadas: são os homens que fazem as nações, mas os homens são feitos também, em parte, pelas nações a que pertencem (educação, oportunidades…). Isto sim é que é uma verdade à La Palisse. Moçambique como Estado – com os seus partidos, instituições, administrações, ONGs, economia assistencialista, planificada e de grandes projectos – desconseguiu, mas como povo e nação ainda nem sequer começou a tentar. A juventude ainda não se apropriou da soberania (que lhe pertence por direito), não assumiu – ciumenta-mente – Moçambique como coisa sua, não alienável nem a um partido-estado, nem à comunidade internacional (doadores, parceiros de cooperação…). 

O tempo não joga a nosso favor, as acelerações tecno-científicas (nano-tecnologias, inteligência artificial, big datas, algoritmos, biotecnologias…) que aumentam a velocidade e diminuem os espaços, fazem crescer as discrepâncias (já grandes) entre “Nós e os Outros “ (Todorov) e, com elas, o nosso nível de dependência que, ipso facto, vai pondo em risco, cada dia que passa, a nossa independência.

Os dragões da Ásia, os países petrolistas do médio oriente, a China, Israel (campeão das STARTs UPs no mundo) e o Ruanda ensinam que se pode não sucumbir às tecnologias, mas apropriar-se delas e transformá-las em instrumentos de emancipação, a   condição que se delineiem políticas de educação e de investigação (Thomas Piketty, O Capital no Século XXI) que encorajem e dêem espaço à livre iniciativa aos mais jovens.

Essas novas políticas só podem ser feitas por pessoas novas: “Ninguém coloca remendo novo em roupa velha; porque o remendo força o tecido da roupa e o rasgo aumenta” (Mateus 9. 16). A honestidade intelectual (que faz dele um vulto singular no meio da nossa mediocridade política) de José Luís Cabaço (À Sombra da Utopia, Volume I, QUANDO EU ERA NÓS) em recusar, depois de ter servido a aletheia (verdade) socialista, servir Belzebu, deveria servir de  exemplo. Mas como os profetas de casa não fazem milagres, se não queremos desconseguir ser um povo, urge que – sem deixarmos de reconhecer  os méritos históricos dos nossos libertadores – nos emancipemos da maneira retrógrada e anacrónica deles  fazerem política, pensar a economia e organizar a vida social; temos que recusar renovações de mandatos, reais ou supostas, em nome do que não se fez (ou se fez mal) e  ousar meios (todos os necessários) – sepere audi (Horacio) – para escolher e impor (não por razões regionais nem mesmo partidárias) quem tem a estatura moral e intelectual de levar em frente o nosso projecto libertário.

Jovens valentes criaram a Frelimo, a Frelimo criou o Estado, o Estado criou – em parte – os moçambicanos. Agora toca a essa parte dos moçambicanos já criada, dar continuidade ao projecto da moçambicanidade e constituir uma geração à altura dos desafios do seu tempo (Cheik Anta Diop).

Os autores deste artigo (como todos os autores) podem simplesmente criar conseguimentos e desconseguimentos verbais, de palavras ou de conceitos; mas o verdadeiro soberano, os moçambicanos, podem transformar o verbo em realidade.

 Obamaniamente, 

WE CAN

Ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

publicado originalmente no site de Severino Ngoenha: http://www.severinongoenha.com/artigos/o-desconseguimento

Marcos Carvalho Lopes

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