As agências de notícias neste fim de semana pareciam agencias funerárias femininas, com as suas crónicas de necrologia: assim soaram as suas manifestações quanto às mortes de Rossana Rossanda, da juíza Ruth Bader Ginsburg ou ainda da anónima moçambicana crivada de balas em Cabo Delgado…
Rossana Rossanda foi uma grande mulher, apesar de não ter tido o reconhecimento de uma Simone de Beauvoir – talvez por não ter tido um Jean Paul Sartre a seu lado. Não participou na criação dos Tempos Modernos, mas quem acompanhou a política da esquerda na segunda metade do século vinte conhece a importância que teve O Manifesto, primeiro movimento e depois jornal, dos quais ela foi co-fundadora e durante muito tempo Directora.
Apesar das diferenças, ela partilhava com Simone de Beauvoir a convicção laboetiana de que “O opressor não seria tão forte, se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”. Ela não quis ser cúmplice de nenhuma opressão e/ou opressor e, por isso, muito cedo e num momento particular da história, aderiu ao partido comunista italiano. Mas quando se deu conta, com a invasão dos carros armados em Praga em 1956, que Trosky tinha razão e o próprio Stalin e a União Soviética eram opressores, ela não hesitou em dissociar-se deles – como boa parte dos intelectuais de esquerda que alinharam em movimentos trotskistas ou maoístas, a preço mesmo dos vitupérios e excomunhão do comunismo bem pensante dos longos, Toglattis ou berlinguieres. Porém, ela nunca se atomizou (Leibniz), nunca foi uma trânsfuga, nem confundiu fracassos na luta contra a opressão com a cooptação. Recusou assim a tornar-se parte da opressão que combatera desde a juventude, ao contrário do que fizeram muitos (falsos) esquerdistas, dentre os quais muitos famosos moçambicanos, hoje capitalistas em prantos e vitupérios contra instituições – que finalmente reconhecem promíscuas – que eles mesmos criaram, como fatos à medida de os servirem.
As agências, que em vez de noticiosas mais parecem funerárias, também anunciaram a morte de RBG (Ruth Bader Ginsburg), uma mulher judia que, à maneira de Blyden, ultrapassou o que Du Bois chamou a Race Line e militou, sem descanso, primeiro pelo avanço da igualdade do género e pelos direitos das mulheres e, depois, pelas liberdades individuais garantidas a cada pessoa pela Constituição dos Estados Unidos da América… O campo de atuação da RBG não foi a Filosofia, como o de Simone de Beauvoir; não foi o Jornalismo como Rossana Rossana, mas a própria Justiça, tendo o Direito como instrumento, o que lhe valeu ser eleita como a segunda mulher no Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
Mas a maior notícia – fúnebre – foi a da anónima moçambicana morta em Cabo Delgado, com 36 tiros – que serviu para confirmar na opinião-mundo, se ainda fosse necessário – a nossa barbaridade como povo. Em sua homenagem, muito oportunamente, o FORUM-Mulher dedicou-lhe um monumento. Mas que se pode escrever na epígrafe do seu memorial? Filósofa? Provavelmente ela nunca tenha ouvido falar disso. Jornalista ou Jurista? Estas profissões estariam provavelmente fora das suas possibilidades. Dela se diz, simplesmente, que era Curandeira.
O que teriam estas três mulheres ou o que terá a militância política, a Filosofia e o curandeirismo em comum, à parte serem praticadas por mulheres estigmatizadas nas suas respectivas sociedades?
Sem nunca ser citada, a mulher mais invocada – pelos debates do último Domingo foi, sem dúvida a felizmente viva, Procuradora Geral da República, que, como no livro do Apocalipse, se apresenta com uma espada de dois gumes: de um lado representando um dos pilares da nossa moderna Democracia, a Justiça; mas do outro lado, um dos seus maiores fracassos, porque representante de uma Justiça que aparece, até paradoxalmente para quem a empossou, como não independente: com dois pesos e duas medidas e, por isso, incapaz de representar um dos pilares do tripé do poder no modelo democrático, sobretudo como foi concebido por Montesquieu.
A justiça é o que buscaram as três mulheres – mortas – acima invocadas, com práticas literárias e culturais diferentes. Caricatura da Justiça é o que representa para os moçambicanos a Procuradoria cuja missão seria de representar a Justiça.
Existem diferentes asserções de Justiça: dar a cada o que é seu (Aristóteles, S.Tomás Aquino), fazer do homem um fim e nunca um meio (Kant), criar condições de vida em comum aceites por todos (John Rawls) etc. Porém, a singular barbaridade, contra o mínimo ético e mínimo humano, arrogar-se o direito de dispor da vida dos outros, independentemente de quem seja que o tenha feito; ou a indiferença daqueles que criam condições de possibilidade, fabricando e/ou comercializando armas de guerra, de morte, ou ainda enriquecendo-se com elas (quer sejam os políticos, militares, e ainda os traficantes de diamantes, rubis ou petróleo): tudo isso é crime elementar contra a vida.
Há uma terceira conotação da justiça que é o domínio principal da Procuradora Geral da República: saber se ela, a Justiça, é um poder independente ou tem de sustentar os regimes governamentais ou os poderes do momento e do dia.
Juntando a Justiça com a produção de leis (leis justas), Maquiavel que não era propriamente um sacristão, pôde dizer que as nações governam-se com Leis justas e instituições fortes.
As nossas instituições não precisam de nenhum olhar microscópico para que se veja promiscuidade, que faz viver a sociedade pior do que o faz o Covid (não só o 19 mas também o 20). Agora, eis que titãs domésticos, para quem a balança da Buchili pendeu sempre a favor, põem em causa a (im)parcialidade do seu juízo. E ela, qual grande ícone de uma Justiça de facção, é chamada a destrinçar, não o trigo do joio, mas a água suja do H2O inquinada, que resiste a todo processo químico de separação de elementos.
O que contra-distingue o outro pilar do tripé do que devia ser a nossa Democracia, o Parlamento, evidencia-se não só pela promiscuidade, mas pela inacção (na legislatura passada nenhuma lei foi votada por proposta de parlamentares) e o pouco de lei que fazem, é profundamente impopular porque os parlamentares tem a si mesmos, como seus únicos beneficiários, mesmo em detrimento total dos interesses daqueles que supostamente representariam.
Todavia, que nós precisamos reaver o dinheiro das chamadas dívidas ocultas (se ele ainda existe) para avançar ou prejudicar menos o país, é uma verdade à La Palisse. Como é também evidente que precisamos reorientar a educação dos nossos jovens, mostrando que o roubo não compensa e que é necessário se pautar por valores de trabalho, honestidade, sacrifício, abnegação e sentido comunitário; nem que para isso tenhamos que recorrer a prisões e punições. Porém, prisões e punições não podem ser o objetivo, senão transformamos a Justiça em vingança.
Uma sociedade digna desse nome, não é vingativa, não mata, não tortura, nem impede os seus filhos de gozarem das liberdades inerentes a toda a pessoa humana. E quando tem de o fazer, deverá sentir o coração muito contraído e deve fazê-lo na condição de que os indivíduos que representam uma ameaça possam ser impedidos de pôr em causa a vida comunitária e o bem público.
Por isso, contra as concepções seculares de justiça (Aristóteles, Thomas, Kant) nós precisamos de uma justiça costumereira que busque os seus pressupostos legais (nomos) nos nomóis (costumes) e não na perpetuação anacrónica de um direito colonial português (que os próprios portugueses já abandonaram), nem num punitivismo, que se torna num fim ele próprio (que enche as nossas prisões e transforma pequenos desviantes em assassinos), ao contrário da maneira re-integrativa, como as nossas sociedades tradicionalmente resolvem os seus diferendos (problemas) e reintegram os seus desviantes.
Aquela moçambicana anónima, que hoje grita por justiça nos mídias do mundo inteiro, talvez fosse mariana, não a ícone dos franceses, mas a Mariana do Ngoma Yethu (Paula Chiziane) que deambula em transe, levada pelos som dos batuques que continuam a clamar, por Moçambique afora (D. Jaime), e hoje, particularmente em Cabo Delgado, pela justiça e pela Paz.
Os cultores do belo – que filosoficamente se confunde com o bem – que nos vêm dessas terras hoje martirizadas – artistas Macondes (Nkabala Ambelicola, Rafael Nkatunga, Miguel Valingue e outros) – manifestam-se contra as iconografias da Justiça (a Balança e a espada) e não cessam de denunciar os Chitani, espíritos que oprimem e se expressam pela injustiça, pela guerra e a morte e, ao invés, a nos propor os Ujamaa: o sentido de família, de solidariedade, de comunidade, tudo o que as mulheres são e representam, como o sentido da nossa iconografia de justiça.
Os povos governam-se com leis justas e instituições fortes (Maquiavel). Porém a Justiça não passa hoje pela defesa dos transfugos da nossa história, mas pela defesa das muitas marianas – e marianos – que não cessamos de produzir para depois boçal e selváticamente assassinar.
Então, sim: que as agências noticiem mulheres – Rossana Rossanda, Ruth Bader Ginsburg, Mariana Ngoma Yethu – mas que o façam para celebrá-las no que elas são e têm de sublime e comum: fautoras de vida e batalhadoras pela causa da justiça.
Adeus curandeira, até sempre Mariana Ngoma Yethu.
Ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Eva Trindade e Carlos Carvalho