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O FARDO DO HOMEM: BRANCO E NEGRO

Ensaio de Severino Ngoenha, Eva Trindade e Carlos Carvalho

Joseph Rudyard Kipling, escritor (e poeta) prolifero e reconhecido mestre da narrativa, foi nomeado em 1907 o primeiro Nobel da literatura da língua inglesa. No essencial, ele ambienta os seus escritos na Índia natal. Como muitas celebridades – do desporto (Eusébio, o madeirense Ronaldo), da literatura (Derrida, Camus) da política (Francisca Van Dunem, António Costa…) nasceu na periferia do(s) império(s). Parece que a grandeza de certos países, como outrora dos impérios, está intrinsecamente ligada a posses ultramarinas, que geram homens paradoxais, e algumas vezes esquizofrénicos, e com relações complexas, num misto de sentimento pátrio duplo, de pertença e complexos.

Entre os muitos e diferentes trabalhos de Kipling merece destaque “O Fardo do Homem Branco” (The White Man’s Burden), onde ele exalta a missão educadora e civilizadora dos ingleses no Oriente, o que lhe valeu, o epíteto de profeta do imperialismo britânico, por George Orwell.

Fazendo-se porta voz do império britânico,  a partir da sua posição de escritor, ele veio sobrepor a literatura às teorias antropológicas (de um Gobineau) e da sociobiologia, na efémera cruzada  intelectualoide do século XIX, de tentar fazer passar o colonialismo como um nobre empreendimento, dando-lhe uma roupagem filantrópica. O homem branco tinha o fardo de humanizar o selvagem sans foi, ni roi, ni loi (Pierre Clastre).

A colonização aparecia, então, como uma cruzada para inculcar os rudimentos do direito ocidentalmente positivado e o monoteísmo cristão pós Constantino. Hoje já não se trata de trocar a Bíblia contra a terra (Nkrumah), mas de um evangelho do mercado (Jean-Marc Ela), de uma teologia da prosperidade (Papa Francisco) que consiste em astúcias  de trocar  dízimos com  promessas efémeras de sucesso (muitas vezes libidinais e/ou consumistas); de um direito eurocentrado em que as instituições, as leis, os tratados ao invés de buscar a justiça, confirmam a nossa subalternidade ao Ocidente e constituem pretextos, legitimados por uma lei imposta (até pelo viés das nossas universidades e academias) para a chantagem, coerção, ingerência  e até sanções, i.e., a gramática de uma nova arma política – chamada diplomacia económica – dos poderosos.

Este pretenso colonialismo ‘filantrópico’ encontra hoje uma ulterior justificação, nas nossas guerras endémicas, nas nossas economias periclitantes e de pedintismo (até os orçamentos de Estado dependem do óbolo dos contribuintes ocidentais), nos nossos sistemas de corrupção, nos nossos imbróglios políticos. É que o  homem branco (e também  faber – Max Frisch – e até com pretensões divinas -Yuval Harari) de Kepling provoca mudanças climáticas – que se abatem, in primis, sobre nós – e vem depois, “altruisticamente, ao nosso socorro quando há calamidades (cheias ou secas);  pilota e/ou apadrinha regimes e sistemas antidemocráticos  e depois vem, como observador, controlar os nossos pleitos eleitorais para minimizar (pretextualmente) as suas-nossas trafulhices; hipoteca as nossas economias com um sistema estrutural de dependências e dividas e depois vêm, com um humanitarismo  hipócrita, em nosso socorro, relançando-nos nas garras  individadoras e empobrecedoras do FMI e a BM.

Depois da queda dos impérios, alguns exegetas do imperialismo sugeriram que, a intenção que percorre o conjunto da obra do escritor indo-inglês  é, na verdade, a busca do sentido da existência, que se encontra condensada no seu poema If (Se); Só serás homem se souberes recomeçar.  

 Recomeçar, again and again, parece ser o fardo do homem negro para se emancipar a si próprio, do sofrimento de um filantropismo opressor enquanto o homem branco por sua vez  deveria assumir a suposta responsabilidade de salvá-lo. Como dizia Machel, a luta de libertação dos CONCP tinha libertado, não só os países colonizados mas também os colonizadores. Portugal tornou-se democrático e Europeu depois do 25 de Abril, e isso foi, graças, em parte, as lutas dos povos da Guiné, de Angola e de Moçambique.

O(s) fardo(s) da nossa dependência, que se substituem uns aos outros, têm que ser sempre e continuamente combatidos: só seremos homens e nações se soubermos sempre recomeçar e estar à altura dos desafios que cada situação e momento histórico nos apresenta. A figura de Kunta Kinte, protagonista de um outro romance famoso, Roots (Raízes), desta feita de um afro-americano, Alex Haley (prémio Pulitzer de ficção especial em 1977 e colaborador na publicação da Autobiografia de Malcom X), ilustra, de uma maneira  brilhante, o sentido deste continuo recomeço. Haley, usando a sua genealogia, pinta um quadro histórico-literário vertiginoso, que começa no século XVIII, quando o seu penta-avô Kunta Kinte, que vivia livre e entre os seus, naquilo que é hoje a Gâmbia, foi capturado por traficantes de escravos (antepassados altruístas e humanistas de Kipling) e transportado para os EUA, onde foi vendido. Não obstante a vigilância  e as sevícias permanentes, foge várias vezes, foge sempre que vê um mínimo espiráculo. Mutilado até ter metade do seu pé amputado, não abdica de ser o homem livre que o habita no interior e transmite esse arraigamento à liberdade à sua descendência. É assim que quando com o pé amputado muda de dono e passa a ser caseiro da casa grande (sem senzala), casa-se com a doméstica com quem tem uma filha que, na esteira da determinação e abnegação do pai e dos seus ensinamentos, tenta, por sua vez fugir, continuando a negar, nos Kintes (africanos), a condição de escravo.

Os germes da liberdade ficaram de tal maneira enraizados na família que, 200 anos depois e no termo de 20 anos de investigações, e a partir unicamente do ideograma Kunta Kinte, em que mobiliza dados históricos (arquivos americanos da escravatura), estudos linguísticos (sobre a origem do nome), dados etnográficos (a origem dos povos), meios de comunicação, transportes modernos, questões psicológicas (sobe o sentimento das pessoas), sociológicas (…) e numa epopeia da exaltação da liberdade sem precedentes, a família Kinte, pelo punho literário de Alex , metaforicamente, regressa a Gambia natal, terra da liberdade e talvez o seu destino.

A denúncia e o testemunho deste livro, desmascara que a colonização como fardo do homem branco é uma falácia,  pretexto de uma manipulação ideológica para justificar o injustificável. Neste sentido, é o ónus do homem branco, aliás, do homem em situação de poder.

O romance foi adaptado duas vezes para a televisão e rendeu debates incessantes sobre os preconceitos raciais, verdadeiro fardo do homem negro na América e não só.

O que o indo-britânico Kipling e o afro-americano Haley têm em comum é o credo nas virtudes de um interno recomeço (again and again) como condição da possibilidade para suportar os  fardos da existência.

Há homens que não quiseram ficar fechados no huis clos (Sartre) e mónadas (Leibniz) das raças, sem portas nem janelas de saída; homens que entenderam que somos twoness (Langston Hugues) e que, por isso mesmo,  o fardo nos é comum: Dubois, sempre aberto ao diálogo com os liberais brancos, Senghor, na busca do encontro do dar e receber, Cabral, que nunca confundiu o sistema de opressão com uma raça.  Há movimentos e partidos  que pautaram pela universalidade (a revolução haitiana), pela liberdade de todas as raças (ANC de Luthuli), que não confundiram sistemas de opressão com a cor de pele (CONCP).

Porém, são raros os mandelas capazes, depois de se terem comprometido com a própria  missão (Fanon),  de passar o testemunho a outros, para que a causa de todos possa continuar; Mondlane dizia que podia morrer tranquilo porque a revolução ia continuar. A história está repleta de mugabes, mussevenes, churchills, de gaules, walesas, homens outrora gloriosos, que por não terem sabido ler os sinais dos tempos e se terem agarrado teimosamente ao poder mas sem fôlego para estar à altura da corrida dos tempos foram, desgraçadamente, escorraçados manu militari ou pela vox popoli.

Por detrás das dívidas ocultas em Moçambique, do julgamento de Zuma na RSA, dos dissabores de Eduardo dos Santos em Angola, das aporias insensatas da Guiné Bissau escondem-se, de facto, homens/personalidades/movimentos que mudaram os “regimes de verdade”(Jacques Rancière), e com eles a compreensão e a interpretação da função da política e a maneira de fazê-la. Esta metanóia pro-liberal faz deles mutantes – esses monstros híbridos – que se apresentam pelo que (já) não são (ou nunca foram) – e disfarçam as suas razões (ocultas) e intenções (estranhas).

Os outrora gloriosos frelimos, mplas, paigcs, ancs, tornaram-se hoje seitas heréticas – passados e ultrapassados – em quem os crentes já não acreditam, nem ouvem, mas que temem sejam os únicos a celebrar a missa canonicamente válida. Talvez eles sejam hoje, o maior fardo do qual nos temos que libertar, se queremos continuar a lutar contra o fardo do homem negro que afinal de contas justifica, pretextualmente, o fardo do homem branco e, por isso, é na verdade o fardo da existência humana.

Para aqueles, cuja razão do engajamento é hoje – como era ontem – ver o que o povo quer realizado (Jorge Rebelo), não há saudosismo (Machel) que justifique, moralmente, que continuem apegados ao oposto do que criaram, aderiram, militaram…

Se

 (…)

Se és capaz de pensar – sem que a isso só te atires,
de sonhar – sem fazer dos sonhos teus senhores.
Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo, conseguires,
tratar da mesma forma a esses dois impostores.
Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,
em armadilhas as verdades que disseste
E as coisas, por que deste a vida estraçalhadas,
e refazê-las com o bem pouco que te reste.
Se és capaz de arriscar numa única parada,
tudo quanto ganhaste em toda a tua vida.
E perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,
resignado, tornar ao ponto de partida. 
De forçar coração, nervos, músculos, tudo,
a dar seja o que for que neles ainda existe.
E a persistir assim quando, exausto, contudo,
resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste! 
(…)

Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,
e – o que ainda é muito mais – és um Homem, meu filho!

Joseph Rudyard Kepling

Ensaio de Severino Ngoenha, Eva Trindade e Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

Um Comentário

  1. Primoroso, infelizmente sempre atual..até quando os povos subjugados permitirão o vilipendio me pergunto. Até quando disserem: Basta! e “descerem o morro”, mas prá valer. Aí meus amigos, sai de baixo, nesse dia pedra não ficará sobre pedra.

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