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O GRITO É O ESCUDO DO OPRIMIDO: O Rap Global de Boaventura como ekfrase

“Como é possível lutar? Minhas armas as têm os Troianos

e minha mãe me proibiu que armaduras de guerra envergasse

sem que, primeiro, ante os olhos, aqui, novamente a tivesse.”

Ilíada, Canto XVIII, 187-189

Em 2009 o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos fez a apresentação do que seria a segunda edição do livro Rap Global (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010) assinado pelo rapper Queni N.S.L. Oeste, que vive na periferia de Lisboa e é filho de um mulato angolano “retornado”, herda do pai a sensação de não-pertencimento. Boaventura informa que o pai de Queni, de nome Antero, havia tido sua biografia narrada pelo escritor angolano Manuel Rui no livro Uma casa no Rio de 2007.  Um leitor atento e com o google como aliado descobriria que a citação é equivocada, já que o livro de Manuel Rui se chama A casa do Rio, é um romance de 2007. Ora, numa nota de pé de página há o aviso de que além da apresentação, “Boaventura compôs o texto a partir da audição obsessiva de vozes ininteligíveis e de infinitos silêncios orais”.  Resumindo, o Rap Global é obra de Boaventura, mas um trabalho “diferente”, não só pelo artificio do heterônimo.

O Rap Global de Boaventura tem cerca de 90 páginas de poesia rap (rapoesia), que deveria ser lida “tendo  no ouvido o ritmo da música rap” (p.6), no entanto, isso não significa que o autor se valha de alguma métrica ou estrutura rítmica de rimas evidente: é difícil encaixar tudo que é dito em uma cadência. De todo modo, é uma escrita muito diferente daquela acadêmica que o consagrou como epistemólogo, com a proposta de ecologia dos saberes, valorizando o diálogo Sul-Sul. Romper com essa forma de expressão não é algo que se faz impunemente: é como se alguém que esperávamos encontrar sempre de terno e gravata surgisse em trajes de banho. Quebrar as expectativas da comunidade é algo que cobra sempre um preço. Mas porque um sociólogo respeitado ou respeitável na academia se arriscaria num experimento como este? Com certeza alguém que começa sua carreira rompendo as regras de “etiqueta” acadêmica pagaria pela ousadia com o ostracismo e a forma brasileira mais comum de críticas: aquela que se faz pelas costas, nos corredores, desqualificando o próprio debate. Mas, aos 69 anos, Boaventura teve coragem para bancar este risco, o da indisciplina.

Ora, Boaventura já procurava um tipo diferente de escrita quando, em 2004,  publicou o livro Escrita INKZ: anti-manifesto para uma arte incapaz (Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004), que começa com um “Desfácio” situando seu texto fora de uma tradição: “A minha geração não produziu nada de novo no domínio das artes. Isto não seria um grande problema se ela tivesse sabido usar produtivamente a sua esterilidade. Mas não foi o caso. Podia ter propiciado um novo encontro entre a arte e a vida. Devolver a arte a quem a trabalha quando trabalha. Mas tal não foi possível porque há páginas literárias, salas de concerto, departamentos de arte e de literatura, prêmios, galerias. A minha geração ficou assim condenada a celebrar a sua própria esterilidade e a usá-la para consumo interno. Por isso, já vimos tudo e, sobretudo, o déjà vu. Só não vimos artistas prontos a morrer. A minha geração não conheceu ninguém desse calibre. Em vez de morte, o cansaço. A minha geração foi feita de gente-cansaço, família-cansaço, sexo-cansaço, whisky-cansaço. Cansámos-nos para fugir ao imperativo da arte. Por fim, cansámo-nos para esquecer o cansaço” (SANTOS, 2004, p.11) . Promover o encontro da arte com a vida significaria desviar-se dos clubes que se arrogam autoridade para delimitar o fazer artístico, sublimando uma forma de elitização que reproduz estruturas de exclusão social: o “mundo da arte” é o de uma elite autoindulgente.  

Em entrevista na época do lançamento do Rap Global, Boaventura ponderou sobre como este novo livro se encaixava em sua trajetória de crítica da modernidade e busca de autocriação pela palavra: “Tenho escrito cientificamente muito sobre a modernidade ocidental e tenho criticado sistematicamente os modos como ela, supostamente auto-legitimada por uma promessa exaltante de emancipação, se transformou numa matriz de regulação e dominação social que assumiu três formas principais: o capitalismo, o colonialismo e o socialismo burocrático. Ora isto, que pretende dizer muito, deixa muito por dizer. Onde estão as pessoas e os seus dramas íntimos; as lutas de resistência e as resistências na luta; a criatividade moderna entre a loucura, a violência e o fanatismo; a ruptura com o ancien régime e todos os novos silêncios do universo a que chamamos deus e com quem julgamos falar na farmácia, no ponto de droga, na meditação, nas massagens, no jogging; a poesia, sempre à beira de não existir; a brutalidade sedutora da ordem e do progresso; e sobretudo tanta coisa que nem imaginamos que existe porque existe sobre a forma de ausência e que no pior (melhor) dos casos nos cria mal-estar, provoca insônias e nos faz mudar de namorada ou namorado. Ora, nada disto pode ser dito academicamente (mesmo que o queira descrever em prosa) se o meu único objeto experimental for eu mesmo. É deste limite e do inconformismo perante ele que nasce o Rap como nasceram os meus livros anteriores de poesia”[1].

Além desta busca por traduzir o silêncio, existe uma questão sociológica sem resposta que origina o livro Rap Global: “por que os jovens não participam da política, mas são os protagonistas do melhor discurso de protesto nas nossas sociedades, o hip hop? Então misturei referencias filosóficas e sociológicas com a cultura urbana e o rap”[2].  Esse jogo de referências, que vai dos quadrinhos de Wolverine, Liga da Justiça a Marjane Satrapi; a música de Jay-Z, Kayne West, Mercedes Sosa, José Mario Branco, axé, reggae e funk; poetas e escritores como Safo, Erza Pound, William Blake, Shakespeare, Goethe Camões Holderlin, Celan, Gertrude Stein, Jorge Luis Borges, Neruda, Tagore, Sófocles, Mallarmé, Baudelaire, Whitman, Rimbaud etc; os filosofemas de Nietzsche, Marx, Heidegger, Giordano Bruno, Hegel etc. Essa mistura de referências da cultura erudita e popular é um gesto de quebra de hierarquias que desnuda a necessidade ética e política de “destruir” os cânones, que alimentam o status quo da desigualdade social e o estabilizam como lugar-comum, ao reificar uma ordem de saber que exclui a maioria. Tomar a erudição como uma série de clichês distorcidos pela ira subalterna é um procedimento que se filia a tradição do rap, como um “grito de revolta contra a injustiça social, o racismo e a violência. Mas é também um grito de revolta contra os gritos de revolta que até agora deram em nada. Por isso tem de interpelar toda a tradição eurocêntrica, mesmo a mais transgressiva, fazendo dela uma amálgama obscena”.

A falta de pudor nessa mistura começa já nos primeiros versos do “rap global”, numa espécie de “refrão” que será repetido durante o texto, ainda que com a modificação da ordem de alguns de seus versos: “jesus caminha/ caminha com alguém/ que pode ser ninguém/ caminha com alguém/ em las ramblas de granada/ e não acontece nada” (p.9).  Colocar um “jesus” e um “alah” de letras minúsculas na primeira estrofe pode parecer uma heresia, mas a provocação maior é dizer que aqueles que caminham ao seu lado, sendo alguém ou ninguém, se acomodam, já que “não acontece nada”. Temos aqui uma sub-versão do Canto VI do poema O guardador de rebanhos de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, em que um Jesus Cristo, na forma de uma eterna criança, anda de mãos dadas com o eu-lírico.  É agora o niilismo que é companheiro no cotidiano depois da “morte de Deus”, como uma máquina em que gritos silenciados que se tornam notícias e a busca de transcendência uma mera negação que não produz efeitos. Não há redenção, remédio ou caminho convergente que possa solucionar, não há aparelho que se possa comprar, mas a busca continua e se desloca: “perdeste a paciência/ queres estar só/ compras um solidificador/ queres estar triste/ um tristificador/ queres estar alegre/ um alegrificador/ queres estar longe/ um longificador”(p.17). E de quando em quando, o texto nos adverte contra os tradutores de seu sentido: o objetivo não é multiplicar teoria, nem dar outro mote para os que observam a distância. Neste canto, a sagração do indivíduo que alimenta a literatura democrática de Whitman acena, contraposta a ausência de valores transcendentes, cabe a cada um a rebeldia dos valores: “comete estritamente/ só os teus erros/ e manda a eternidade/ à puta que a pariu/ quando o mundo nasceu/ já havia deuses velhos/ que ninguém viu”(p.58).

O sublime ou o belo estão longe dos versos de Boaventura, como um canto anti-lírico, em que o mundo não cabe em si, ou como diria Cazuza em sua fase final, “enquanto houver burguesia, não haverá poesia”. Mas aqui a “burguesia” se desdobra em império, em colonialismo, racismo e sexismo (que se reflete/repete na própria linguagem falogocêntrica do rap); o autor costuma falar em hetero-patriarcado. A linguagem de modernidades futuristas, surrealistas, antropofágicas foram sampleadas, em clichês torcidos por chistes de ironia. Boaventura crítica os “modernos” poetas da mudança, que não tem compromisso suficiente para arriscar sua existência, vendem sua revolta radical “mas comem iogurtes/ sem gordura/ e vegetais biológicos/ tem pensamentos bomba/ hecatombes for trade” (p.31). De quando em quando, em letras maiores (não maiúsculas, não há letras capitais no texto), como num outdoor sentencia: “real life tribal brother/ improve comedy”, algo como, “a vida real, companheiro de tribo, aprimora a comédia”. O que se busca não é o “Real”, é o assombro. Algo que funcione como antídoto para as anestesias do cotidiano, a acomodação.

Nessa salada, erros de superfície podem ter ecos profundos, já que tudo é superfície e não cabe nota de rodapé: “black music/ no recôncavo baiano/ ile axé/ freestyle rap/ não há linguagem/ no candomblé/ só há transe” (p.75). O que este transe faz aqui é lembrar que o leão tem sete cabeças, e é preciso dar um passo que leva do ceticismo para a utopia prática, de quem profetiza agindo.

Nas quase 90 páginas deste Rap Global – diferentemente do que acredita o autor – é difícil intuir o ritmo para seus versos livres: o flow e as rimas são feitas de ideias repetidas e retecidas, com rapidez e urgência antropofágica. Talvez essa dificuldade esteja ilustrada pelos versos da contracapa “nem mil ritmos/ fazem dançar este peso/ de ser em parte/ e só saber em parte”. A incompletude deixa seu rastro e seu peso, quando o todo não precisa da “parte”. Ainda assim, o autor diz filiar-se a uma perspectiva underground de rap, que manteria o gesto crítico quanto aos poderes hegemônicos. Se não há uma convergência que justifique os diversos discursos de resistência, o “rap global’ de Boaventura deve se valer das “conexões marginais” – descritas por Halifu Osumare, como a capacidade do hip-hop de conectar periferias de todo mundo –  que unem aqueles que resistem. Nas palavras de Boaventura: “Não há emancipação social; há emancipações sociais unidas (porque diferentes) por uma aspiração que uma vez resumi assim: temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza, temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (CONDE e SANTOS, 2010).

Por essa descrição, o Rap Global parece impossível, assim como a tentativa do sociólogo português de usar a máscara de um mestiço filho da descolonização e na diáspora, para escrever um rap. Mas não é o trabalho da literatura traduzir o silêncio e repercutir os gritos dos que não tem voz?

 

O Rap Global é uma tentativa de tradução intersemiótica, ou seja, busca transformar em palavras impressas uma outra forma de arte, que mistura ritmo e poesia na construção da canção. Na tradição literária, o texto poderia ser considerado uma espécie de ekfrase, uma forma de descrição detalhada que procura fazer com que o leitor “veja” por meio das palavras uma obra de arte de outro tipo: música, dança, mas principalmente, pintura. A ideia tradicional de que a poesia é uma espécie de pintura com palavras vem dessa tradição da ekfrase. Acredito que se compararmos a primeira ou mais famosa descrição deste tipo, a feita por Homero na Ilíada do escudo de Aquiles, com o Rap Global de Boaventura, vamos entender melhor como essa segunda obra “funciona”.

Vou explicar brevemente o contexto em que, na Ilíada, o escudo de Aquiles é descrito por meio de uma ekfrase. Aquiles se desespera ao saber da morte de seu amigo Pátroclo, que foi assassinado pelo herói troiano Heitor. Pátroclo vestia então a armadura de Aquiles, que foi espoliada por Heitor. A mãe de Aquiles, a nereida Tétis, procura saber qual é a causa do desespero de seu filho. Diante da raiva desmedida (hybris) do filho, Tétis, apesar de saber que o destino dele seria encontra a morte no conflito, resolve ajuda-lo, prometendo trazer-lhe uma nova armadura, feita especialmente pelo deus Hefesto. Aquiles deveria esperar até o dia seguinte a volta de Tétis, com sua nova armadura, mas a deusa Hera o avisa de que deveria ir imediatamente ao campo de batalha, já que o corpo de Pátroclo corria perigo de ser levado pelos troianos e desonrado. Aquiles pondera que sem uma armadura pouco poderia fazer, mas Hera lhe diz que vá ao campo de batalha, que a presença dele inspiraria medo nos troianos. Aquiles chega próximo do lugar dos combates e com um grito indescritível – “amplificado” por Atenas –  provoca terror nos troianos e permite que os gregos recuperem o corpo de Pátroclo. Homero narra então o trabalho de Hefesto na construção da nova armadura de Aquiles, detendo-se no escudo, em que entalhou céus e mares, estrelas e duas cidades (cheia de detalhes, numa há um casamento, noutra uma batalha), campos de sendo arados, vinhedos, rebanhos etc. circundado pelo rio-Oceano. O que nos interessa aqui, é que essa obra feita com as palavras der Homero é impossível fisicamente, é uma descrição detalhada de uma obra de arte, que mostra o poder investido no escudo de Aquiles pelo cuidado de Hefesto.

O Rap Global tem algo em comum com o Escudo de Aquiles. Boaventura já pensava sua escrita INKZ como ekfrase, mas de um tipo diferente, em que “a descrição é meramente potencial porque a obra de arte tem que estar ausente para que os leitores comuns e incomuns criem sobre ela as suas obras de arte”, deste modo é “uma ekfrase das ausências e das emergências” (SANTOS, 2004, p.14). O rap não é como a pintura: não se trata de tentar repetir o tipo de descrição feita por Homero do trabalho de Hefesto, mas de tentar encarnar e repercutir o grito apavorante de Aquiles. Por se ligar as ausências e emergências, o Rap Global trata da perspectiva dos que não podem contar com a solidariedade de deuses, aqueles que nunca tiveram armadura e mesmo sem proteção, se atrevem a gritar, traduzindo o indizível em palavras duras. O rap é o grito que serve de “escudo” para os oprimidos, uma proteção que vem da ira, do orgulho de quem continua lutando, ainda que contra a indiferença do destino.

 

O Rap Global se justifica pela atitude, o gesto de romper linguagens e muros e propor traduções, diálogos. Se não é propriamente um “rap” e se sua característica “global” parece desenraizada, é no diálogo efetivo que pode ganhar vida e servir de fonte para outras rimas. Esta é uma forma de efetivar a ideia de ecologia de saberes, aproximando a academia da linguagem das ruas, o hip-hop da sociologia. Foi isso que aconteceu em julho de 2014 no espetáculo “Há palavras que nasceram para a porrada”, que apresentou canções que foram resultado do diálogo entre Boaventura com um coletivo de rappers, que se apropriou e redescreveu versos do Rap Global em novas rimas. Assim surgiram as canções: “A Mulher do Cacilheiro” (Capicua); “Líquida” (Capicua); “cacilheiro/navio negreiro” (Chullage); Nha Povo (Hezbó MC); Filhos do Vento (Hezbó MC); “Manifesto do S.U.L (Só a União libertará) no Norte” (Lbc Soldjah); “Odisseia de desemprego” (Lbc Soldjah).

Rap Global já foi cantado e adaptado para os palcos como uma espécie de “ópera”. O próprio Boaventura já tomou o microfone para mandar suas rimas. Mas, ainda assim, este pequeno livro continua provocando algum desconforto. É que, para que ele funcione, precisa deixar de ser livro. Precisa ser fonte de onde se roubam versos, precisa ser traduzido em novos trabalhos que rompam as fronteiras da academia, na busca de reconhecer as múltiplas formas de sabedoria e democratizar a educação.

 

 

[1] CONDE, Miguel, e SANTOS, Boaventura de Souza.“Boaventura de Sousa Santos fala sobre ‘Rap Global’”. O Globo, 24/07/2010. Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/07/23/boaventura-de-sousa-santos-fala-sobre-rapglobal-310530.asp (Acesso em: 19/08/2017).

[2] FREITAS, Guilherme e SANTOS, Boaventura de Souza. “Boaventura de Sousa Santos lança poemas de ‘otimismo trágico’. O Globo. 31/10/2016. Disponivel em:   <https://oglobo.globo.com/cultura/livros/boaventura-de-sousa-santos-lanca-poemas-de-otimismo-tragico-1-17926559> (Acesso em: 19/08/2017).

Marcos Carvalho Lopes

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