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O livro de filosofia como álbum

As teses filosóficas não passam de pinceladas, rabiscos e esboços na longa tela da nossa criação intelectual

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Para entendermos como realmente é feita a filosofia, é instrutivo ver a trajetória do pensamento de Wittgenstein. Como temos visto, esse filósofo passa de um extremo a outro na sua surpreendente guinada intelectual. Não podemos, propriamente, falar em ‘evolução’ do seu pensamento, já que isso significaria que há uma espécie de corpo conceitual que ‘cresce’, que se ‘desenvolve’ mas que se mantém como tal corpo. No caso do filósofo austríaco, o que ocorre é um abandono de certas teses para se assumir outras que não são só diferentes como opostas.

            A história da filosofia já viu exemplos dessa mudança radical de teses em autores tão importantes como Platão. O antecedente, portanto, é muito antigo, mas nem por isso menos importante. Pressionado pelos argumentos dos sofistas, Platão percebe um grau de verdade naquelas críticas e se vê na necessidade de abandonar as teses sobre o ser que defendera pela influência de Parmênides. Numa passagem dramática do Sofista, com efeito, o discípulo de Sócrates chega a falar em “parricídio”. Num parricídio intelectual, isto é, já que se viu na necessidade de “refutar as teses de nosso pai Parmênides”.

            Num cenário que não é muito diferente — o da discussão de ideias, do debate com críticos —, Wittgenstein se viu forçado não só a revisar as teses que defendera no Tractatus como a modificar diametralmente suas posições. Num período de aproximadamente quinze anos, ele abandona sua antiga maneira de pensar e passa a construir uma nova visão filosófica do mundo. Nos dois casos, a linguagem ocupa um lugar central. Na sua primeira fase, o filósofo preocupara-se pela construção de uma linguagem formal, nos últimos anos da sua vida, suas reflexões orientam-se para a linguagem natural.

            Já disse, em várias oportunidades, que a filosofia existe como filosofias, e que cada filosofia não é mais do que a biografia intelectual dos diferentes filósofos. Os sistemas filosóficos, na verdade, não são um espelho teórico da realidade mas um como-eu-vejo-o-mundo de cada um dos filósofos. De início, e influenciado por Parmênides, Platão viu o mundo, o ser, a realidade, de uma maneira; pelas críticas dos sofistas, viu-se na necessidade de ver as coisas de um modo completamente diferente. No caso que nos ocupa, e pela influência de Frege e Russell, o jovem Wittgenstein passou a ver as coisas de uma perspectiva determinada; pelas críticas e por reflexões posteriores, viu-se na necessidade de abandonar sua antiga visão e construir outra radicalmente diferente.

            No Tractatus temos um racionalismo de cunho diferente, uma espécie de neo-racionalismo. Um racionalismo que assume os seus próprios paradoxos — como vimos anteriormente. Nele podemos ver um sistema que se pretende fechado e definitivo. É por isso que as primeiras linhas das Investigações filosóficas nos surpreendem tanto. No segundo parágrafo do Prefácio, Wittgenstein reconhece que, depois de várias tentativas infrutíferas por apresentar os resultados de suas reflexões num todo coeso, percebeu que nunca o conseguiria. Assim:

O melhor que poderia ter escrito não teria sido outra coisa senão observações filosóficas; [pois] meus pensamentos teriam sido logo mutilados se os tivesse forçado numa única direção contra sua inclinação natural.[1]

Essa “inclinação natural”, diz a seguir, o obrigava a ir em várias direções, como numa viagem. Por isso, “As observações filosóficas neste livro são, para dizê-lo de uma maneira, esboços de paisagens feitos no curso de longas e envolventes jornadas”.

            É sugestiva a analogia do desenho. Indo e vindo pelos mesmos lugares, novos esboços são feitos dos mesmos motivos, mas, cada vez, de ângulos e perspectivas diferentes. Portanto, novas reflexões são feitas sobre os mesmos assuntos. Reflexões que, por sua vez, resultam de problemas ou de motivações novas e diferentes. Tudo isso impede que o resultado seja um discurso ou um texto fechado, completamente coerente, uniforme, que flua de uma proposição para outra como numa prova matemática. Assim, pelo fato de ter escrito o livro como quem desenha a paisagem numa viagem, fazendo dela diferentes esboços e desenhos: “Este livro é realmente só um álbum”.

            Se pensarmos bem, o que fazemos ao refletir sobre os problemas teóricos que nos ocupam durante nossa trajetória intelectual não é outra coisa além de retratos, esboços e desenhos de tudo aquilo que vemos e pensamos. É nesse sentido que nossas teorias filosóficas não passam de ser pinceladas na longa tela de nossa trajetória intelectual.


[1] Ibid., p. v.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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