ensaio de Severino Ngoenha, Giverage do Amaral e Augusto Hunguana
O paradoxo de Epicuro apoquentou o pensamento de gerações de filósofos que, não poucas vezes e por desespero, resvalaram em sentimentos de angústia, de abandono, de absurdo em relação à vida humana, que vão do ateísmo ao deicídio, passando por acusações a um Deus que estaria ausente, longe e indiferente à sorte do homem.
A partir da constatação do problema do mal e da presença constante do sofrimento, Epicuro postula que os deuses não podem estar preocupados com o bem-estar da humanidade. O paradoxo de Epicuro é um dilema lógico sobre o problema do mal, que argumenta contra a existência de um Deus que seja ao mesmo tempo omnisciente, omnipotente e benevolente, uma vez que:
- Enquanto omnisciente e omnipotente, Deus tem conhecimento de todo o mal e poder para acabar com ele, mas não o faz. Então não é benevolente;
- Enquanto omnipotente e benevolente, tem poder para extinguir o mal e quer fazê-lo, porque é bom. Não o faz, pois não sabe quanto mal existe e onde está. Então não é omnisciente;
- Enquanto omnisciente e benevolente, sabe de todo o mal que existe e quer mudá-lo, mas não o faz, pois não é capaz. Então não é omnipotente.
Estudos teológicos, no ardor de sua fundamentação, dedicaram tempo e esforço para reflectir sobre os grandes dilemas das impossibilidades divinas. É possível Deus criar uma pedra que não possa carregar? Como pode caber a maldade num mundo criado por um Deus que é a infinita perfeição e bondade? Pode Deus amar algo para além de si mesmo, que não seja ele mesmo, uma vez que nada existe fora dele (Tomás de Aquino, Suma Teológica)?
Estas (supostas) aporias divinas remetem à existência de (supostos) conflitos divinos (teodiceia), que resultariam da necessidade ontológica de todo o ser amar, in primis, a si mesmo. Assim, a poiesis divina – criação do mundo e do Homem – seria uma forma encontrada por Deus para resolver o seu conflito intrínseco. Criando o Homem à sua imagem e semelhança, Deus transfere para este, seu alter ego, a responsabilidade de O amar incondicionalmente, sob pena de incorrer na desventura do inferno eterno se ousar se desunir do seu criador. Embora dotado de inteligência e vontade, o Homem é assim intimado a um imperativo husserliano de colocar em epoké (entre parêntesis) as suas faculdades de razão e discernimento para existir só e somente para o seu criador.
Em defesa da harmonia e justiça divinas, o filósofo da harmonia universal, Gottfried Wilhelm Leibniz, escreveu os Ensaios sobre a Teodiceia – aglutinação de theos e diké –, o que significa literalmente “Justiça de Deus”. O objectivo do livro é vir em socorro da justiça de Deus, defendendo que, não obstante o mal, este é o melhor dos mundos possível. A perfeição suprema de Deus, ao produzir o universo, escolheu o melhor plano possível, onde existe a maior variedade e a maior ordem.
Leibniz ilustra, iconograficamente, a sua tese através do palácio dos destinados (que parece inspirar-se na Torre de Babel), construção piramidal (pirâmide dos possíveis que se seguem até ao infinito) onde os mundos são ordenados segundo as diferentes situações que contêm. Quanto mais se sobe, mais os mundos são perfeitos. No último andar está o mundo actual, o melhor mundo possível…
As antiteodiceias não se fizeram rogadas e não provieram só dos sarcasmos de Voltaire (Candide) contra o melhor dos mundos – depois do terremoto de Lisboa –, da nietzschiana morte de Deus (Assim Falava Zaratustra), da expulsão de Deus dos negócios humanos (Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov), mas inicia, retrospectivamente, com o humanismo (contemporâneo das navegações marítimas e dos descobrimentos), o qual, com as Meditações Metafísicas de Descartes, mandou Deus de férias – reduzindo-o a um Deus ex machina –, e com Pico della Mirandola proclamou a dignidade do Homem (De Dignitates Humanae Vitae).
Com o antropocentrismo o Homem destronou o teocentrismo e arrebatou o lugar de Deus. Criado (criacionismo) ou produto da evolução (evolucionismo), como postulara Darwin no século XIX, o Homem reivindica a sua centralidade no universo (medida de todas as coisas), e com a sua tekné (técnica) e kultur (cultura) o estatuto de demiurgo. O humanismo – contemporâneo do globus, obra de navegadores, descobridores e geógrafos – não pode conviver com a nebulosa que Darwin chamará homo sapiens: é mister definir, na pluralidade de mundos e culturas que as navegações marítimas desvendam, quem deve ocupar de facto o lugar outrora de Deus e ser a medida de todas as coisas (Protágoras). A teodiceia imanente de Grotius (pai do jusnaturalismo), autorizando a guerra contra os peles-vermelhas, o Direito Internacional Público (Soares e Vitória) legitimando a ius ad bellum (direito à guerra justa), a controvérsia de Valladolid (primeiro debate sobre os direitos humanos) autorizando a escravatura dos negros preparam o terreno para a Constituição Americana, que já no prólogo sentencia, enfim, que o porto seguro (reclamado por Pascal) sobre o qual se vai construir o antropocentrismo é o homem caucasiano, com parâmetros bem precisos: branco, anglo-saxão e protestante (o resto é residual, fauna acompanhante). A pirâmide leibniziana é retomada e laicizada. Em cima da pirâmide deve sentar o homem ocidental, caucasiano, cujas feições – WASP – e feitos o distinguem do pele-vermelha, do amarelo e do negro.
Porém, ao destronar Deus e ocupar (idolocraticamente) o seu lugar poético, o novo demiurgo carrega também as contradições inerentes a essa posição. Pode o homem ocidental caucasiano amar alguém para além de si mesmo, alguém que não seja a sua emanação? Aceitaria, este Narciso confesso, amar algo ou alguém que não seja dele derivado e não reflicta a sua imagem? A esta questão Frantz Fanon responde categoricamente que não: o humanismo eurocentrado não pode ser universal, pois a gramática da sua teodiceia é o colonialismo.
À semelhança do Deus-criador, cujo lugar usurpou, o demiurgo caucasiano “cria” a sua pirâmide e categorias, com povos a serem escalados por raças e culturas e, sobretudo, obrigados a renunciar às suas essências e existências (inteligência e vontade) a favor de um amor incondicional ao “antropoteos”. À semelhança do velho teos decaído, do qual ele herdou as prerrogativas, o demiurgo condena ao inferno – conflitos, guerras, fome, pobreza, sanções – todo aquele que não se sujeita ao seu projecto narcisista de amor. Doravante, é à sua benevolência que devemos a nossa sobrevivência.
O homem negro, vermelho e outros – que a pluralidade das navegações desvelou – reclamaram e obtiveram as suas independências políticas (sair da dependência): proclamámos repúblicas, içámos bandeiras, criámos hinos nacionais (…), porém isto nos foi consentido porque se inscreveu na linguagem (instituições, roupagens, pautas) que o demiurgo criou. Ele detém as coordenadas, conhece os meandros e, por isso, controla e exerce sobre elas a sua caucasocracia. Alguns de nós – iludidos pelo platónico mundo de aparências – até galgámos a pirâmide e ascendemos a presidentes, ministros, deputados, empresários, burgueses, mas continuamos no mezanino da pirâmide, porque prisioneiros no interior de uma cosmologia que foi feita para que Teodoro/Narciso estivesse no ápice e dominasse demiurgicamente as suas criaturas.
Os nossos 25 de junhos (independências), mesmo os mais arrojados e marxistas, foram sempre (como o idealismo alemão, a economia política inglesa e o socialismo utópico francês, contra os quais Marx se ergueu) políticas inscritas num cosmogonia caucasocentrada. As nossas liberdades – do grego Eleuteria – não têm a ver, in primis, com a ideia de autodeterminação, ligada à ideia de liber arbitrium, mas com a ideia de passar a fazer parte, pertencer à única cosmogonia que habita as nossas imaginações. As nossas rupturas e desobediências epistemológicas (de desconexão, pós-coloniais) inscrevem-se (fagocitadas) no interior de arcabouços teóricos de uma construção caucasiana do mundo. Ontologicamente devemos o que nos resta de sobrevivência à benevolência (poder e saber) do demiurgo que nos criou.
Enquanto não ousarmos o antropodescentrismo e tivermos coragem de matar o idólatra e usurpador que reina em nós e sobre nós, nunca seremos nós (alter ego do outro) e continuaremos a pronunciar o nome liberdade como sinónimo de independência, que, por sua vez, subentende a dependência.
Talvez a China e a Índia devam as suas ascensões ao enraizamento nas respectivas cosmogonias. Talvez tenhamos que desviar o olhar e prestar mais atenção a Cheik Anta Diop – e seus discípulos Obenga, Bernal, Omatunde (…) – o qual, em Nações Negras e Cultura (radicalmente em ruptura com a metafísica cosmogónica caucasocentrada) nos convida a nos referirmos a uma cosmogonia afrocentrada, que, segundo a sua tese, seria anterior quer ao teocentrismo (que a plagiou) quer ao herético antropocentrismo (que falsificou a história)…
ensaio de Severino Ngoenha, Giverage do Amaral e Augusto Hunguana
África surge et ambula