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O perigo niilista de Moçambique

ensaio de Severino Ngoenha e Carlos Carvalho

 O que eu conto, é a historia dos dois próximos séculos. Eu descrevo o que virá, o que não pode não acontecer: o evento do niilismo. Esta historia pode ser contada a partir de agora, porque a necessidade está já em obra e fala através de cem sinais e o seu destino se anuncia em todos os lugares; todas as orelhas estão já estendidas em direcção a esta música futura. Toda a nossa civilização (…) espera tortuosamente desde há muito tempo que cresce de lustro em lustro e leva à catástrofe; inquietante, violenta, precipitada, ela é um rio que quer chegar ao seu termo, ela já não pensa, teme reflectir. Assim escrevia Nietzsche no fim dos anos 1880.

Antes de ser filosófico com Nietzsche (e depois Heidegger), o termo ‘niilismo’ serviu primeiro para descrever o budismo, a literatura de Sade, a arte dadaísta, o individualismo de Steiner, a raiva de destruição da música de Wagner, os demônios da literatura russa do século XIX de Turguêniev  a Zinoviev, o vazio de Viena de Freud a Musil, depois, sobretudo para caracterizar  e interpretar a paixão da destruição militar do século XX europeu, com as duas guerras mundiais (Hermann Rauschning). Talvez também sirva para caracterizar certas políticas e regimes africanos e, hic et nunc, seja o melhor diagnóstico para descrever a decadência e a crise de valores no Moçambique de hoje.

 Para além das velhas (Renamo) e novas guerras (Cabo Delgado), um dos maiores sinais do espectro de desolação e niilismo que paira sobre Moçambique é o julgamento das dívidas ocultas, onde  “deuses abscônditos” se  digladiam – sem preocupação pela vida do capim baixo e alto – por vias interpostas e a coberto da máscara carnavalesca e covidiana dos pequenos réus que temem, socraticamente, salmodiar: Eu só sei que nada sei.

Esta afirmação ecoa sabedoria. Por isso, no julgamento da BO parece estarmos  diante de réus filósofos, como um dia o próprio Sócrates se encontrou diante dos efegenios  baptistas da Atenas do seu tempo.

O problema é que a maiêutica socrática (como mais tarde o cepticismo metodológico de Descartes ou o Mestre Ignorante de Jacques Rancière) eram pedagogias para apreender a verdade enquanto a ignorância (e amnésia) aparente dos réus são um simulacro (Jean Baudrillard); estratégia sofista de advogados, para fazê-los ocultar (através do denego, silêncio e pseudo esquecimento) a verdade. 

Contra o elogio niilista  do Pensamento Fraco (Gianni Vattimo e Píer Aldo Rovatti),  é a verdade e não artimanhas jurisdicionistas, subterfúgios e estratégias sofistas para defender corruptores da moral pública – grave acusação que, apesar de falsa, levou Sócrates a tomar a cicuta – que constitui o fundamento da Basileia que Platão (que nos revelou Sócrates e dele se serviu como argumento de autoridade) pretende construir. Alicerçar a polis  (a vida em comum) sobre a verdade significa pôr, por cima do panteão axiológico o valor ‘Justiça’.

Num dos seus diálogos – em volta da justiça, do direito, da lei e da equidade – Platão invoca, para melhor a repudiar, a figura de Callicles.  Contrariamente ao que é comumente admitido – o Direito, como promotor da igualdade de todos e condição de possibilidade para uma vida harmoniosa contra o estado da natureza onde a violência e a selvageria têm força de lei – o sofista Callicles considera o Direito como uma invenção dos fracos contra os mais fortes, da qualidade medrosa contra a qualidade virtuosa; Callicles opera uma autêntica transmutação de valores e apresenta o Direito  como uma invenção perversa fomentada por pessoas medíocres contra os que, legitimamente investidos pela natureza que lhes atribui o poder, deveriam ser habilitados a comandar, legiferar, dizer o direito, a norma e a lei. Ao invés de regulamentar harmoniosamente as intersubjetividades numa perspectiva igualitária, o direito é apresentado como o enunciado de um ressentimento dos fracos, cristalizado em regras onde, sob a cobertura do justo, os fracos  comandam os fortes.

Com o pretexto de  inverter a genealogia do Direito e o edifício jurídico, Callicles, e os sofistas em geral, levam à derrocada do niilismo, demolindo a fragilidade da ordem moral e social; destruindo (à maneira dos Ndambis  e Nhangumelos)  os  tabus, as proibições, as  leis, as regras, as  normas e os costumes. Platão acusa os sofistas de serem mercantes de ilusões, negociadores da sabedoria, vendedores de opiniões aos melhores pagadores; enganadores  que subordinam a retórica  a finalidades cúpidas.

Depois de terem passado muitos socialistas Russos,  parece ser a vez de  Dostóievski desembarcar na Machava. O que está em causa no processo das dívidas ocultas, não são os direitos dos acusados ou o dever dos advogados em defender os seus constituídos, mas a moral pública e o risco do niilismo. Trata-se de uma confrontação entre os valores societais e o solipsismo, onde indivíduos, sozinhos e contra todos (Max Stirner), se aplicam a reivindicar a sua unicidade sem povo: egoísmo, apetência mórbida pelo dinheiro, preferência pelo efémero e a incapacidade de distinguir entre  o grande e o pequeno, o bem do mal.  

A BO não é um tribunal – nem mesmo sofista – mas um coliseu romano, onde césares e pompeos – ainda mais do que as feras na arena – reversão o próprio ódio e o desejo doentio de sangue e vingança – até a preço do sofrimento dos seus filhos, próximos, colaboradores, povo – rivalidades amorais de gangues contrapostas de ímpios, que  comportam o risco extremo de aniquilar  todo o caminho feito juntos em prol da moçambicanidade. 

É a história de um partido autófago que, na sua queda moral e luta fratricida, não hesita em arrastar consigo o país e o povo. Qual melhor aprendizagem para o niilismo que correr, de maneira consciente e voluntária, em direcção à própria perda? Assistir e participar no escangalhar e na descomposição de Moçambique em directo, por obra de antropófagos políticos, que se  chibam (nutrem) do nosso sangue (pobreza, guerras, morte) e se disputam ( quão esclavagistas) o nosso preço.

O teatro mórbido da BO escancara, aos olhos de todos, a morbidez dos nossos servidores-patrões  e,   sobretudo, revela e denuncia a saúde mental da nossa sociedade (Agostinho), onde parece que tudo o que existe – como afirma Mephistópheles no Fausto de Goethe – é digno de ser destruído. O teatro mórbido da BO, mais do que comédia bufa, é um aviso sério ao risco que corremos como país (unidade e integridade territorial) e povo (liberdade e democracia): é um desafio existencial de sobrevivência, que precisa de uma solução pragmática (Richard Rorty).

Se como alemães diante da shoa (genocídio) podíamos fingir não saber, o teatro mórbido da BO liberta-nos da ignorância e tira-nos o cabaço da inocência. Non serviam – não servirei a nada nem a ninguém (Diógenes). Doravante não se trata  fideisticamente – porque seria cretino e Derrota do Pensamento (Alain Finkielkraut) – procurar  e escolher pessoas (novos profetas,  salvadores, predestinados…), grupos ou partidos, mas  projectos de sociedade e mecanismos de participação, de controlo e de transparência democrática.

Sócrates não pode ser reduzido, unicamente, ao  ‘sei que nada sei’: ele é a figura emblemática do conflito original entre a filosofia e a cidade, conflito inevitável já que, em virtude da sua missão crítica, cabe à filosofia questionar o bem fundado dos valores, das opiniões e das crenças sobre as quais se funda a cidade e o viver em comum. Alicerçar a polis sobre a verdade significa colocar no cimo do panteão axiológico o valor ‘Justiça’, que só se pode atingir num processo de diálogo. Aliás, é nisto que consiste a pedagogia de Sócrates e o espírito filosófico que daí decorre.

As democracias inventaram – como atesta a nossa própria constituição – partidos, parlamentos, mídias como únicos espaços legítimos para o exercício democrático; ódios, vinganças não têm lugar na democracia e só levam a um ciclo vicioso de violência e abrem espaço ao niilismo…

Se, como o maluco de Nietzsche, formos às sedes e células do(s) partido(s) à procura do homem  interessado por Moçambique e pelo seu povo,  só encontraremos cópias e simulacros de Nhangumeles e Nhambis à espera de bustanis; podemos entoar o requiem porque ‘eu o povo’, de Mutimate Barnabé João,  morreu. Por isso, o dilema existencial que temos pela frente é simples na sua radicalidade e dramaticidade: resistir aos factores e fautores da decadência, ser donos das nossas vidas e destino ou aliená-los a patrões solipsistas e sermos precipitados no vazio do nada.

 Niilismo…    Also sprach – assim falou – Zarathustra (Nietzsche).

Severino Ngoenha, Carlos Carvalho

Marcos Carvalho Lopes

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