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PARA QUE FILOSOFIA VIII: Filosofia e temor

Não é pela falta de capacidade que não se filosofa, mas pelo medo do desconhecido

Gonçalo Armijos Palácios

O segundo capítulo de Diretrizes do Pensamento Filosófico1, do lógico e filósofo polonês Bochenski — que contém os dez programas transmitidos pela Rádio Bávara, em 1958 —, trata justamente da filosofia. Nele, Bochenski faz considerações instigantes. A primeira é esta: “Por mais estranho que isto pareça — provavelmente não há homem que não filosofe; ou, pelo menos, todo homem se torna filósofo em alguma circunstância da vida”. (p. 21) Essa afirmação tem que ser tomada com muito cuidado e precisa de uma interpretação cuidadosa. Por quê? Porque é claro que nem todo mundo é filósofo. No entanto, toda pessoa reflexiva — e penso que o número é grande — alguma vez se questiona a si própria sobre questões fundamentais. Pois, num sentido, somos sempre obrigados ou motivados a refletir filosoficamente nas mais variadas circunstâncias das nossas vidas. Por exemplo, quando alguém morre na nossa família ou no círculo de parentes e amigos próximo a nós, por mais jovens que sejamos, há um momento em que somos levados a pensar sobre questões fundamentais que, no fundo, são transcendentes. Perguntamo-nos, por exemplo, sobre a morte. Que é a morte. Se, de alguma maneira, é uma espécie de continuação da vida num além desconhecido. Isso, inconscientemente, pode nos levar a questionar sobre o tipo de existência que nós temos. Isto é, a perguntar que tipo de ente somos, se somos feitos de uma substância só, a matéria, ou se somos feitos de duas substâncias diferentes, o espírito e a matéria. Essas últimas, claro, são questões ontológicas e, portanto, filosóficas, mesmo que não saibamos que o são nem tenhamos escutado nunca o termo ‘ontologia’ nem que tipo de estudo ele é.

Um triste episódio como esse, também, pode nos levar a pensar na distinção entre bem e mal, na oposição entre prêmio e castigo, ou na a existência ou não de valores transcendentes, aqueles que não dependem de nós, seres humanos, e que, de alguma maneira, subsistem como entidades abstratas, mas não menos reais, fora de nós, seres concretos. A morte de alguém, também, pode nos levar à pergunta sobre o sentido da vida, sobre os nossos valores.

Todos nós passamos por esses momentos críticos, esses momentos que eu chamaria ‘momentos de encruzilhada’, quando somos obrigados a tomar decisões e escolher novos rumos para nossa vida. Então, sim, Bochenski tem razão, todo homem torna-se filósofo em alguma circunstância de sua vida, apesar de sê-lo por poucos instantes. Mas são, evidentemente, instantes decisivos, cruciais. O fato é que os seres humanos não simplesmente vivemos, mas vivemos, queiramos ou não, uma vida que é decidida por nossas reflexões. Reflexões que, por sua vez, são a resposta tipicamente humana aos desafios da vida. Quando alguém muito próximo a nós morre, ficamos tão abalados que somos como que bombardeados por perguntas que surgem no mais íntimo de nós e que não podemos evitar. E o que menos temos vontade de fazer é ir aos livros para ver o que outros, ou os filósofos, dizem ou já disseram sobre a morte. Somos, assim, seqüestrados por esse evento difícil e obrigados a refletir. Nesses momentos, estamos completamente a sós — somos nós e nossas reflexões. Esse é o momento tipicamente filosófico. Quando somos como que atacados por alguma circunstância da nossa vida e obrigados a encarar a dificuldade com a nossa única arma, o pensamento, pois, sem escudos nem armaduras, lutamos unicamente com nossa razão. Isso faz de uma reflexão, uma reflexão propriamente filosófica.

Aqueles momentos de encruzilhada, em que pela própria vida somos forçados a refletir filosoficamente, nos definem como futuros filósofos, ou não. Penso que a maioria das pessoas passa por eles e se põe a refletir por si para chegar a determinadas, decisivas e difíceis respostas. Mas nem todas elas continuam nas suas reflexões, não porque não possam refletir com profundidade. Muito pelo contrário, porque, pela própria profundidade à que chegam seus pensamentos, sentem temor de mergulhar nas profundezas e nos abismos daquelas águas que parecem não ter fundo. Nem todo mundo pode ser filósofo, não porque não tenha condições intelectuais para isso. Não; mas pelo temor que sentem ao perceber que sua razão pode levá-los às profundezas de mundos nos quais não sabem o que irão encontrar. E têm medo de descobrir o que aguarda para ser descoberto.

Não é pela falta de capacidade que não se filosofa, mas pelo medo da descoberta de um mundo que, talvez, não seja aquele com que estamos acostumados e no qual já nos acomodamos.

1 Trad. de Alfred Simon, 6. ed. São Paulo, EPU, 1977.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1983), da revista Philósophos (1986), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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