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PARA QUE FILOSOFIA XI: Filosofia e poesia

Gonçalo Armijos Palácios

A impossibilidade de todas as teorias filosóficas serem verdadeiras só prova que, em sua essência, a razão filosófica se faz numa dimensão poética

Cheguei a uma conclusão surpreendente, mesmo os que negam que a filosofia e a poesia sejam uma e a mesma coisa, devem ser levados a aceitar essa identidade, ou, então, uma proximidade que apaga qualquer limite discernível entre uma e outra. O problema surge quando concebemos a filosofia como essencialmente racional e a poesia como o oposto. A poesia, se nos diz, está intimamente ligada à imaginação e se desenvolve num plano, em algum sentido, irracional.

Mas, o que é irracional? Ou como devemos defini-lo? Para isso, naturalmente, devemos pressupor uma concepção precisa de ‘racional’. Mas, pensemos detidamente, é possível dar uma definição rigorosa e unânime de ‘racional’? Se considerarmos, por exemplo, dois argumentos opostos, chega um momento em que um deles é admitido e o outro rejeitado. No entanto, as razões para uma coisa e outra não podem ser claramente discernidas. Lembro que mencionei em outro lugar1 uma discussão entre o filósofo e teólogo Alvin Plantinga e o filósofo Reinhard Grossmann. O primeiro, com fortes argumentos, defendia a existência de Deus, o que o segundo negava, não sem fazê-lo de maneira igualmente sólida. Chegou uma hora em que nenhum dos dois se convenceu dos argumentos do outro e continuou acreditando no que começara defendendo. No entanto, nenhum deles entendia como o outro não admitia as razões que eram apresentadas contra seus argumentos. Assim, a não admissão por parte do outro das várias objeções eram tidas, por ambos os debatedores, como fruto de uma posição dogmática e ‘irracional’. Mas, em que consiste a irracionalidade nesse caso? Pois, obviamente, um não podia apresentar Deus e dizer: “Deus está aqui, pronto, provei minha tese!” E para o outro ficava mais difícil provar que Deus não existia por Ele não estar em nenhum lugar em que se O procurasse, já que há infinitos lugares para procurá-lo.

O fato de não acharmos algo que buscamos na nossa casa é prova de que o objeto não está em casa? Se sondarmos palmo a palmo a casa toda, ainda existe a possibilidade de estar em algum lugar que não olhamos direito. Mas, depois, digamos, de várias buscas como essa, não seria razoável (ou racional) chegar à conclusão de que o objeto não está em casa? Talvez. Pois, dependendo da circunstância em que nos encontramos, uma rápida olhada poderia ser suficiente para dizer que um determinado objeto que procuramos não está em casa. Depende do tamanho da casa, do tamanho do objeto etc. Muitas circunstâncias concorrem para fazer de uma busca suficiente ou não, e, portanto, tornar a conclusão altamente provável e, nesse caso, razoável ou, então, racional. O racional, percebam, não pode ser definido exclusivamente olhando os processos internos da mente. Devemos, também, considerar as circunstâncias que envolvem a pessoa. Que faz de um crente acreditar que Deus existe? E que faz de um ateu acreditar o contrário? Bom, raciocínios, argumentos. Mas também fatos, feitos da história, da própria vida. E, assim, poderíamos enumerar uma lista que não acaba. Quando deveria acabar? O irracional, nesse caso, seria uma atitude que não conclua nada, que jamais se satisfaça com as evidências apresentadas. A busca não pode ser infinita. Naquela ocasião, e presenciando o debate do início ao fim, tive a impressão de que tanto Plantinga quanto Grossmann terminaram convencidos de que o outro defendia sua crença de modo irracional. Por quê? Porque não aceitava o que outro tomava como “evidência”. Mas, devemos ser tachados de irracionais por não tomar como evidência o que o outro nos apresenta?

O curioso é que um filósofo racionalista, Kant, nos fornece um bom argumento para provar que não há realmente um limite claro entre poesia e filosofia. Com efeito, Kant pensa que podemos, racionalmente, provar tanto uma daquelas teses do debate mencionado como a outra. Por quê? Porque, ele dizia, a razão é dialética, e com isso queria dizer que, em certas condições, é levada a inevitáveis contradições: pode provar tanto a tese como a antítese.

Pensemos na filosofia como tem existido realmente na história. O que vemos? Um conjunto interminável de teses não só contrárias como absolutamente díspares, incomparáveis entre si. Teses que parecem não compartilhar o mesmo mundo em que os pensadores as propuseram. O problema é que nem todas podem estar certas, pois a maioria delas encontra oposição em outras igualmente bem defendidas. O que necessariamente nos deve levar a concluir que só alguns filósofos têm razão. Mas se isso é assim, que dizer do resto? Devemos dizer que só os filósofos que estão certos pensaram racionalmente e os outros o fizeram ‘irracionalmente’? Claro que não. O que devemos concluir é que não existe um procedimento mental ao que possamos, sem mais, chamar de ‘puramente racional’.

Pensemos na dialética hegeliana. Quando entramos nela e a entendemos, aprendemos que, por um processo de contradições e superações, há um progresso na história que é levado, no fundo, pelo Espírito Absoluto. Mas, se não é assim, talvez Marx tenha razão. A maneira como Marx entende o triunfo do capitalismo em A questão judaica, é uma prova inegável de imaginação poética e capacidade criativa. Pensa, dialeticamente, que o cristianismo surgiu do judaísmo, no que tem razão. O judaísmo, contudo, é amor pelo dinheiro — sempre segundo Marx. O cristianismo se desenvolve na época medieval incorporando, no entanto, o judaísmo. Mas este, finalmente, toma conta da história ao tornar judeu não só o cristão, mas o mundo contemporâneo. Como? Por fazer do mundo contemporâneo um mundo capitalista, um mundo em que o Deus é o próprio dinheiro — o que, pensava, era a essência do judaísmo. Desse modo, o judaísmo, que fora subsumido numa fase primeira, consegue se desenvolver e se realizar no próprio Estado capitalista, pondo, assim, as bases para sua própria superação dialética — ao criar o proletariado e a miséria generalizada. Ora, se Marx está equivocado, e também Hegel, o único que podemos concluir é que tanto um quanto o outro conseguiram criar — o que a imaginação poética faz — uma história fantástica digna de nossa admiração e do maior dos poetas, mesmo que nelas não acreditemos. Se nem todas as teorias filosóficas — de outro lado fantásticas — estão e podem estar certas, só nos resta concluir que, em essência, o pensamento filosófico é e só poder ser, também, poético.

1 Foi um par de semanas atrás, no programa de rádio Filosofia no Ar, pela Rádio Universitária, 870Kh AM.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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