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PARA QUE FILOSOFIA XII: Lógica e poesia

Gonçalo Armijos Palácios

A criatividade nas ciências pode unir o que de poético tem o mais racional do pensamento humano

Num artigo anterior afirmei que a proximidade entre a filosofia e a poesia apaga qualquer limite discernível entre elas. Isso pode ter sido interpretado como afirmando que, então, o filósofo é um poeta — ou mais ainda, um poeta lírico. Nada disso. ‘Poesia’ tem vários significados, e nem todos podem ser reduzidos a ‘lirismo’, ‘versificação emotiva’ ou coisa semelhante. Tomei ‘poesia’, num sentido original, como ‘criação’. E pensava nos vários tipos de criação racional de que os seres humanos somos capazes. Nesse sentido, todas as artes são poesia, já que são criação — um tipo específico de criação mesmo que seja difícil, se não impossível, definir em que consiste tal especificidade. Tampouco estou sugerindo que por ser um processo racional a criação poética não deva ser emocional. Uma obra de arte, criada emotivamente, não deixa de ser feita racionalmente. Ao criar não podemos deixar de pensar no que estamos fazendo e o que queremos fazer.

O poeta que faz um soneto não pode deixar de pensar que deve escrever catorze versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. Há, num sentido, um cálculo poético e, dentro das várias formas de poesia, portanto, uma lógica do poético.

Por outro lado, e insistindo no significado de poesia como ‘criação’, a tarefa lógica não deixa de ser poética. Digo isto por experiência própria. Numa fase dos meus estudos filosóficos me aprofundei com brio na lógica contemporânea e devo ter resolvido centenas de teoremas como aluno dos cursos de lógica. Alguns deles tinham mais de 150 passos. De início, sabia que o teorema iria me tomar muito tempo e requerer um esforço de concentração enorme. Há mais de uma forma de se provar um teorema. E a escolha de que estratégia seguir já é um desafio para a imaginação. Note-se: “imaginação”, pois sem uma boa dose de imaginação não se prova nenhum teorema que represente algum grau de dificuldade. Em alguns casos, surgem barreiras que parecem intransponíveis. E a gente se pergunta: “mas será que este teorema tem mesmo uma solução?” “Não estará equivocado o enunciado do teorema?” etc. Era na época dos meus estudos de doutorado na Universidade de Indiana. Finalmente chegava à solução e, revisando a prova, via que havia alternativas. Algumas mais simples do que outras, ou, em linguagem lógica, mais ‘elegantes’. Algumas provas, com efeito, eram mais do que ‘elegantes’, eram ‘belas’. Pois, escolhendo-se, por exemplo, uma prova por redução ao absurdo, podiam-se evitar passos desnecessários. E pensava: “é um belo recurso” ou “que belo passo”. E, de algum modo, esse “belo passo” não se diferenciava do que sentia quando, ao tirar uma música no violão, descobria um acorde intermediário numa determinada seqüência, e me extasiava e dizia: que belo acorde de passo. Não pareciam ser diferentes os dois “passos”, o lógico e o musical. Ambos eram igualmente belos, igualmente imaginativos, igualmente criativos.

Tempo atrás escrevi sobre o que Einstein pensava de certas soluções na física teórica. Eram, dizia o grande físico, fruto de uma inspiração instantânea. Eram e não eram racionais. O esforço de se encontrar é consciente, é racional, mas a solução nem sempre o é. Nem sempre é possível desandar o caminho que, na lógica ou nas matemáticas, levou a uma determinada solução. O mesmo podemos dizer de qualquer problema difícil que nos tenha incomodado e exigido enorme concentração e dedicação.

Um lance no futebol, como as pedaladas de Robinho ou os dribles do Ronaldinho Gaúcho, são obras-primas da criação e da inventiva no esporte. Assim como certas harmonias e acordes na música. Do mesmo modo, podem ser belos certos lances no xadrez — como aqueles cavalos que o Bobby Fischer tirava no meio do tabuleiro, onde se desenvolve a estratégia do jogo, e os colocava na coluna da torre, bem no canto, aparentemente abandonados e sem nenhuma função. Esse lance tornava-se, no final, “a jogada”. Quem joga xadrez não poderia deixar de ficar tocado pela beleza estratégica e tática dessa aparentemente inócua — e mesmo equivocada — decisão.

E que dizer das construções geométricas dos últimos cem anos? Construções que a Euclides, certamente, teriam maravilhado? Os metateoremas matemáticos de Kurt Göedel são paradigmas da beleza poética do raciocínio lógico. E faço, aqui, uma distinção, entre ‘beleza’ e ‘poesia’. Pois além de ser impressionantes exemplos da criatividade humana, isto é, da poesia, são, ao mesmo tempo, belos.

Ao inundar a lógica e a matemática — os tijolos racionais com que construímos conceitualmente o mundo — a poesia perpassa, não só a filosofia, mas todas as ciências.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção em 2005

Marcos Carvalho Lopes

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