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PARA QUE FILOSOFIA XV – Convergências e divergências

Sem resultados convergentes, não há ciência; sem divergência, não haveria filosofia

Gonçalo Armijos Palácios


No último artigo mostrei o que considero erros na posição de Bochenski sobre filosofia e racionalidade. E é justamente isso que faz da filosofia uma atividade única. Não é preciso concordar com algum outro filósofo para fazer filosofia. O mais seguro é que para que a filosofia continue, precisa-se de discrepâncias e de se manter posições antagônicas. A filosofia não é simplesmente a continuação do velho. Tampouco se limita à construção de conceitos. É a tentativa de se abrir caminhos, isto é, de se construir e criar a partir da divergência com a tradição. Não se trata, no entanto, de uma divergência absoluta, destruidora. A tradição é importante porque ela é, de uma ou de outra maneira, incorporada nas novas maneiras de se filosofar. Pois não existem só antagonismos, há também convergências.

Como exemplo podemos tomar o que disse sobre racionalismo no último artigo. Discordava, completamente, da afirmação de Bochenski que insinuava que a poesia, de alguma forma não bem explicada, não pressupõe racionalidade. No mínimo, a concepção de Bochenski de ‘racional’ é estreita demais, para não dizer falsa. Isso, não obstante, não impede que concorde com outras afirmações feitas pelo autor de Diretrizes do pensamento filosófico.* Quando trata da variedade de concepções de filosofia, Bochenski afirma: “Cada qual tem seus argumentos e é defendida bastante convincentemente. Os representantes de cada uma dessas opiniões afirmam dos adeptos das outras que eles de modo algum são filósofos. É divertido ouvir com que absoluta certeza são pronunciados tais juízos.” (p. 27) Em geral, as escolas e correntes filosóficas adotam, com efeito, essa atitude excludente e autoritária. Excludente porque, assumindo que estão certos, excluem da filosofia todos aqueles que não pensam como eles. E autoritária porque se atribuem a si próprios uma autoridade que não é fundada em argumentos e sim numa decisão arbitrária. Concordo, portanto, com a passagem que acabei de reproduzir que é seguida, imediatamente, da seguinte: “Os positivistas lógicos, por exemplo, costumam estigmatizar como metafísicos todos os filósofos que não pensam como eles. Ora, metafísica é para eles pura tolice, no sentido mais cru da palavra; um metafísico profere sons e nada diz. Assim também os kantianos: são metafísicos para eles todos os que pensam de modo diferente de Kant; mas isso não significa que digam asneiras, mas que estão simplesmente superados, pois são anti-filósofos. Sobre o soberano desprezo com que os filósofos existencialistas tratam todos os outros, não é preciso falar, pois é de todos conhecido.” (p. 27)

Na academia, lamentavelmente, o que se vê é isso. Quem não pertence ao grupo que define a filosofia de uma única maneira, não é filósofo. Desse modo, num departamento de filosofia dominado por certa concepção do que é filosofar, quem não concorda com ela não é admitido como docente. Além disso, todos os que concebem o trabalho de modo diferente ao que num certo local se defende, são estigmatizados e ignorados olimpicamente. Isso tem uma grave conseqüência: os alunos, que têm a desgraça de entrar nesses departamentos, saem deles com uma visão deformada e unilateral do que é o trabalho filosófico. O Brasil, lamentavelmente, pagou caro por isso. Com efeito, pelo fato — reconhecido pelo professor Porchat — de um dos mais prestigiosos departamentos de filosofia do país ter decidido que a universidade não formava filósofos e sim comentadores, o resultado é o que vemos: a ausência de pensamento filosófico original no Brasil. No país, que tem departamentos de filosofia de alto nível, há grandes comentadores e excelentes historiadores da filosofia, mas não filósofos. Só nos últimos anos esse triste quadro parece que começa a ser mudado, mas lenta e dificilmente.

Bochenski é contra esse partidarismo filosófico nefasto, e afirma acertadamente: “Parece-me muito razoável a afirmação de que o filósofo se deve ocupar do conhecimento, dos valores, do homem e da linguagem. Mas por que somente com esses objetos? Acaso já foi demonstrado por algum filósofo que não existem outros objetos para a filosofia? […] Nunca foi demonstrada coisa semelhante.” (p. 28) Com efeito, o que faz da filosofia um campo sem limites é justamente a falta de problemas ou objetos privilegiados, únicos, exclusivos e excludentes. O que a história demonstra é que tudo pode ser objeto da reflexão filosófica, mesmo que, paradoxalmente e como conseqüência de sua natureza, não possamos definir o que é filosofia. Na verdade, nada do que Bochenski aponta foi demonstrado, mas há muito mais: quem poderia demonstrar quais serão num futuro próximo ou distante os problemas e os objetos que os filósofos irão tratar? Quem quiser delimitar objetos filosóficos deve, não somente legislar sobre o passado e o presente, mas sobre o futuro, arrogando-se um poder, certamente, sobrenatural. Terminando aquele raciocínio, Bochenski diz: “E se olharmos ao nosso redor, o mundo parece estar cheio de questões não resolvidas, questões importantes e decisivas, que pertencem a todos os campos acima mencionados, mas que não são tratadas, não podem ser tratadas, por qualquer ciência particular.” (p. 28)

O que nas ciências naturais e nas ciências exatas seria o fim, a contradição, a oposição de teses e resultados antagônicos, na filosofia é o solo fértil do qual se alimenta o pensamento filosófico.

  • Diretrizes do pensamento filosófico. São Paulo: EPU, 1977. Estou analisando a seção “A Filosofia”.

GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS, filósofo e professor da UFG, é articulista do Jornal Opção.

Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção

Marcos Carvalho Lopes

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