0

Para que os filhos ilegítimos possam gerar um futuro diferente

Ontem soube da morte trágica de um amigo de juventude, daqueles que sempre tomamos como próximos e leais, apesar de muito tempo sem convivência. Publico esse texto aqui como uma homenagem e por ainda não ter as palavras certas para essa despedida.

Marcos Carvalho Lopes

“E eu nem gosto de negros!”. Imagine ouvir essa frase no começo da transição da infância para a vida adulta dita pela pessoa que considerava ser a sua mãe ou seu pai. A frase surge como um suplemento para a informação de que não é um filho legítimo, de que na verdade foi “adotado” (“pego para criar”) e de que a suspeita de rejeição, os momentos de rispidez e violência por parte de sua mãe e/ou de seu pai estavam justificados: não conseguiriam o amar, afinal, ele é negro. Essa situação de adoção incompleta gera uma dívida impagável, junto com um ressentimento que paralisa o processo de amadurecimento se a identidade racial não é assumida de uma forma positiva. E a tendência maior é, na medida das possibilidades, negar ou esquecer completamente a negritude – já que isso seria assumir a posição de quem não pode ser amado.

Essa situação estranha de caridade que pede gratidão e reafirma a exclusão é uma grande tecnologia das formas de vida gestadas nos contextos lusófonos. Como já explicou o filósofo Filomeno Lopes, no período colonial na Guiné-Bissau a pessoa de cor que tinha como genitor um cidadão portugues, tinha documentos que o identificavam como “filho ilegítimo de…”. Isso gerava efeitos jurídicos, religiosos, sociais, mas o que justifica a institucionalização da ilegitimidade? O que significa ser alguém ilegítimo?

Filomeno Lopes avaliou como essa condição de ilegitimidade marcava o ser africano e até mais do que isso, define a própria África, que “não é necessariamente e essencialmente um lugar físico – mesmo que geograficamente localizável – mas uma história dramática, pertencimento histórico comum, vínculo de sofrimento pela cor da pele e atributos de nascimento, mas também um espírito, uma cultura, uma tradição e fundamentalmente um Projeto de destino histórico ou de liberdade e libertação, uma paixão” (LOPES, 2009, p.249). 

Ora, a partir dessa definição e da condição de racismo e desigualdade que marcam o Brasil, o reconhecimento de que muito de nós somos filhas e filhos da África é inevitavelmente parte dessa história dramática. Mas há um problema severo nesta filiação ilegítima se pensarmos nas práticas coloniais que geraram sociedades patriarcais, altamente hierarquizadas e voltadas para exploração (combinando historicamente no Brasil latifúndio e escravidão), acumulo e depredação. Se estamos fora do “jogo de sucessões” não temos nada para herdar, o passado é encoberto e as relações são esquecidas, o discurso liberal e de igualdade é uma camada de simulações que dissimulam a violência, exclusão e desigualdade.

Também Filomeno Lopes descreve como uma primeira resposta das populações africanas diante do imperialismo europeu se vale “das lições aprendidas nos dias da escravidão nos navios do comércio negreiro do Atlântico, que se dão como uma forma de consciência (consapevolezza) “de que o segredo de um combatente pela vida não está em sua capacidade de desembainhar sua espada ou guardá-la em sua bainha, mas na consciência (consapevolezza) de que, quando ele decide matar, ele mesmo deve morrer primeiro. Isto mesmo, esteja pronto para morrer! Em suma, a África, este filho ilegítimo, nasce como a possibilidade de sua própria morte, como alguém que, diante da morte real, entende que não tem mais nada a perder e que, para ser alguém, deve aceitar a morte do que foi até então como um ser histórico: sua cultura, seus costumes, sua língua, sua tribo, em suma, ele deve abandonar e aceitar a morte de seu mundo, a fim de abraçar a “escola dos recém-chegados” (Cheik Hamidou Kane) que agora se tornaram seus pais legítimos, mas também seus opressores, sabendo (consapevolezza) que, a partir de agora, esta escola será seu único desafio verdadeiro. Este desafio é essencialmente uma questão de vida ou morte: mas se a semente não morre, não dá frutos. Afinal, a África é, em sua essência, um combatente da liberdade-esperança” (LOPES, 2009, p.241-242). 

Esta morte é um exorcismo dessa filiação ilegítima, deste fantasma da Europa que surge como um pai absoluto e impossível (pela lógica da exploração predatória colonial e patriarcal, o que é acumulado e herdado se dissolve, na impossibilidade de ocupar o lugar do pai original, gerando a necessidade de novas fronteiras de dilapidação, destruição, exclusão e monocultura).  O pan africanismo é uma forma de tentar exorcizar esse fantasma, formando argumentos que convidam para uma experiência de reconstrução da subjetividade, mas a forma de exercê-lo é diferente em lugares diferentes. No Brasil, a necessidade de reconstruir as heranças africanas e indígenas é a possibilidade de pensar um país que faça sentido para todos e que não repita os ciclos de dissimulação e suas tecnologias que, naturalizam uma sociedade de extrema desigualdade, exclusão, racismo e extermínio do que fere a ordem patriarcal. As práticas de violência e racismo nunca precisaram no Brasil de teorias prévias, já que se impunham como um modo de vida de exclusão, exploração e extermínio, numa forma de autoimperialismo em que o inimigo e quem deve ser contido é o próprio povo. O racismo no Brasil é diletante porque cultivado numa lógica de dissimulação e negação. 

O livro de Filomeno Lopes nos ajuda a quebrar essa lógica e a exorcizar os fantasmas da ilegitimidade. Faz isso fugindo também de uma das marcas fundamentais da erudição bacharelesca lusófona, que é de ocultar a autoria e responsabilidade sobre as ideias através de infindáveis citações, quase sempre de autores estrangeiros. Ora, Filomeno Lopes escreve uma carta para a juventude italiana, na tentativa de construir um pacto contra a ignorância racista e pensar uma nação em que o respeito e a tolerância se articule pela renúncia de privilégios que a ideologia racial oferta às pessoas brancas.

Se Amílcar Cabral acreditava que depois da Independência as classes dirigentes deveriam renunciar à tentação de se constituírem como classe, numa forma de “suícidio da pequena burguesia” que seria passo indispensável no processo de descolonização das mentes; Filomeno Lopes não pede menos para a população branca para que seja possível pensar um futuro pós-racial na Itália. 

O Brasil enquanto projeto de nação tem enfrentado momentos difíceis. Aprendi também com Filomeno Lopes a necessidade de não só combinar o otimismo da vontade com o pessimismo da razão, mas de correr o risco de ter esperança e profetizar um futuro melhor. É isso que devemos fazer quando queremos quebrar essa lógica em que a “filiação ilegítima” é um modo de destruir as possibilidades de existência para além da hierarquização racial. Nós que temos essa história em comum (dos países de colonização portuguesa), assumimos a África como parte do que somos e do que sonhamos ser. Nosso legado é esse diálogo, é reconstruir e enraizar o pensamento nos colocando em questão.

Da mesma forma como me senti honrado pelo convite de Filomeno Lopes  para escrever essa carta que busca recontextualizar seu trabalho para o público brasileiro, foi difícil executar a tarefa. Isso porque ela me envolve de um modo especial: a cena inicial deste texto não é nem uma reconstrução biográfica, nem uma abstração que surge como experimento de pensamento. Trata-se de uma situação que é comum no Brasil e calha de ser em grande medida o modo como entendo o posicionamento de meu pai em relação ao mundo e a sua própria identidade e possibilidades de existência. Na condição de filho ilegítimo que cobra uma dívida impagável seguiu sua trajetória de errância, sem conseguir ser pai, sem conseguir ser branco, sem se reconhecer plenamente como negro. O lugar do pardo tem sido mobilizado pela lógica da dissimulação, que ao mesmo tempo o celebra como “sujeito” de um ser brasileiro, por encarnar a possibilidade de supressão de antagonismos; no entanto, efetivamente, deve saber “seu lugar”, respeitar as hierarquias patriarcais e mostrar gratidão pela possibilidade de embranquecimento e dissimulação das questões raciais. Mas sem enfrentar esse fantasma, guarda em si o antagonismo destrutivo, muitas vezes matando as possibilidades de amor, auto-respeito e cuidado. Entender essa narrativa como uma cena fundadora do Brasil – por isso, comum a muitas histórias pessoais e símbolo de um fado comum – com seus dilemas de reconhecimento e máscaras de dissimulação é uma tarefa complexa e necessária para superar e enfrentar as dinâmicas de repetição que reiteram a diferença como exclusão e impossibilidade de ser.  

Jataí, 24 de Abril de 2022

Referências

LOPES, Filomeno. E se l’Africa scomparisse dal mappamondo?: una riflessione filosofica. Roma: Armando,2009.

BRITO JÚNIOR, Bajonas Teixeira de. Lógica dos fantasmas. Ensaio sobre Dissimulação e Cultura no Brasil. Vitória, 2007.

Marcos Carvalho Lopes

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *