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Pegar táxi na questão racial

“O taxi não para pra você, mas a viatura para: esse é o problema do Brasil” Emicida

Quando se fala de racismo ou de questões raciais muitas vezes é preciso lidar com um ruído de resistência “bem-intencionada” que procura fugir do assunto multiplicando pressupostos, formulados muitas vezes em interrogações essencialistas, que, no fundam negam a relevância do tema ou mesmo a sua existência. “Mas o que são questões raciais?”, “o que são raças?”, “se as raças não existem cientificamente, como podemos falar em questões raciais?”, “formular questões raciais é inventar divisões e imitar norte-americanos…”, “na minha casa isso nunca foi problema”, “tenho amigos negros…” etc.

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W. E. B. Du Bois

A palavra raça incomoda, angustia, cria mal-estar. O melhor seria não a utilizar, não encher sua bola, desinflar esse balão, ser deflacionista. O horizonte pós-racial é o futuro, mas não seria cínico fugir do tema hoje? Desinflar o balão pode significar simplesmente fugir das questões essencialistas e perguntar sobre o cotidiano, ver como as coisas se passam no dia-a-dia.

Cornel West já era um nome eminente no começo da década de 90. Professor na importante universidade de Princeton, voltava para Nova Iorque com sua esposa, Elleni, entusiasmado com o resultado de suas aulas naquele dia de Setembro de 1992: pela manhã, no curso de Estudos sobre Cultura europeia havia debatido a primeira metade da República de Platão e, de tarde, na disciplina de Estudos sobre a cultura afro-americana, seu tema foi o livro A alma da gente negra de  W. E. B. Du Bois. Cansado, mas com bem humorado, Cornel West conectava os dois autores com o sentido básico que dava para sua vida: por um lado, a figura de Sócrates na casa de poderosos comerciantes do porto de Pireu, com sua crítica profunda e problemática da democracia ateniense corrompida pela ignorância e paixões da massa, demostra a necessidade de “falar a verdade aos poderosos, com amor, para que a qualidade da vida cotidiana das pessoas comuns seja melhorada”; já o exemplo de Du Bois ao colocar o problema da barreira racial (color line) como sendo o problema do século XX,  inspira seus esforços para que a supremacia branca seja denunciada de forma incisiva, desfazendo sua autoridade e legitimidade.

West ao chegar em Nova Iorque normalmente se sentia mais agitado, mas sua previsão de encontrar um engarrafamento não se cumpriu, sinal de sorte já que, depois de deixar o carro em um
estacionamento, teria uma hora para chegar ao seu compromisso: uma sessão de fotos para o seu novo livro sobre assuntos raciais. Faltava só pegar um táxi o que não seria tarefa difícil numa movimentada rua de Manhattan. Porém, depois que o décimo taxista lhe recusou como passageiro e de ter ouvido da senhora pela qual foi preterido, uma norte americana branca, o indulgente comentário “isso é mesmo ridículo, não?”, resolveu pegar o metro e de lá seguir a pé até o local do encontro.

A questão racial estava ali, explícita, no cotidiano, na simples e frustrada tentativa de pegar um táxi. Isso não era uma novidade, outras situações em que enfrentou o racismo tomaram seu pensamento, acusações e abordagens policiais fazem parte do cotidiano de um negro norte-americano. Depois dos ataques de setembro de 2001 o autor disse que a situação de terror que a população em geral sentiu depois dos eventos era algo que fazia parte da experiência comum do dia-a-dia da comunidade negra norte-americana: os atentados democratizaram a sensação de perseguição e ameaça constante. Ele, um acadêmico importante e bem vestido, não conseguiu pegar um táxi, mas o taxista negro Rodney King, foi espancado violentamente por policiais – três brancos e um latino – em março de 1991 ao ser detido sob a acusação de dirigir em alta velocidade. A cena do espancamento foi filmada por uma testemunha e apesar da indignação que causou, o júri – formado por 10 brancos, um negro e um asiático – absolveu os policiais em 29 de Abril de 1992. A reação da população de Los Angeles foi violenta diante do resultado deste julgamento: durante seis dias a cidade conviveu com saques, incêndios, depredação, num conflito em que morreram 58 pessoas morreram, mais de mil ficaram feridas e mais de 3 mil estabelecimentos comerciais foram destruídos. O conflito somente cessou depois de intervenção militar e levou a reforma da polícia de Los Angeles. Em 1993, num novo julgamento, dois dos policiais foram condenados pelo espancamento de Rodney King, que depois recebeu uma indenização do Estado pelos danos sofridos. A questão racial não foi o único motivo do levante de Los Angeles, mas foi seu estopim.

Nesse contexto, depois de chegar atrasado para a sessão de fotos, Cornel West precisou se reanimar para posar para o fotógrafo e a designer – brancos – com quem preferiu não se alongar explicando o motivo do atraso. Uma das fotos deste dia está na capa da edição norte-americana de Race Matters. Neste dia, conversand512lQebfcDL._SY344_BO1,204,203,200_o com Elleni, West pode rememorar o que havia acontecido, nisso, juntos alimentaram o devaneio de mudarem-se para a Etiópia, terra natal de sua esposa. Com a cabeça girando sobre o que havia significado e o que ainda significava a questão racial nos
Estados Unidos, os momentos ruins do dia foram redescritos a partir de uma boa dose de música negra. De todo modo, a moral da história só podia estar na persistência e coragem de continuar: “Jurei ser mais vigilante e virtuoso em meu empenho para enfrentar os desafios propostos por Platão e Du Bois. Para mim, esse constitui um problema urgente de poder e moralidade; para outros é uma questão de vida ou morte”.

Marcos Carvalho Lopes

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