Há filósofos que estabelecem limites e fronteiras. Outros, como Peirce, as ampliam
GONÇALO ARMIJOS PALÁCIOS*
Noventa anos atrás, aos 75 anos, morria Charles Sanders Peirce, um dos pais da semiótica contemporânea e fundador do pragmatismo. Li Peirce nos Estados Unidos, quando cursava meu doutorado na Universidade de Indiana. Na época em que li alguns dos seus ensaios, estava assoberbado pelo estudo de uma corrente filosófica que, aparentemente nova, tinha a profunda influência do racionalismo cartesiano. Era a filosofia analítica que pretendia ter descoberto a pedra filosofal reduzindo tudo a fórmulas lógico-matemáticas.
Inicialmente, interessei-me pela lógica matemática, achando que realmente seria o método que pudesse ajudar a desvendar — eu pensava — a estrutura racional do mundo. Mas, à medida que avançava no estudo dos filósofos analíticos, assim como nos cursos de lógica matemática, ia me desencantando. A artificialidade do método de análise lingüística, da própria lógica e da abordagem dos problemas chegaram a ser, mais do que insuportáveis, um verdadeiro fardo teórico que me impediam de crescer filosoficamente. Chegou um momento em que a leitura de alguns filósofos analíticos da linguagem tornou-se intolerável. Foi quando, para minha sorte, matriculei-me num curso sobre Pragmatismo e tive de ler Peirce. Nunca esquecerei a força libertadora dos ensaios que devorei com verdadeiro entusiasmo.
Num daqueles ensaios (“Algumas conseqüências sobre quatro incapacidades”), Peirce analisa os argumentos que Descartes desenvolve nas suas Meditações e mostra graves inconsistências. Fazer isso, no entanto, não é tão fácil como poderia parecer. Pois dizer, ou insinuar, que há problemas lógicos é uma coisa, provar de maneira irrefutável é outra bem diferente. Mas penso que é isto último que Peirce consegue.
Lembrarei aqui duas dessas críticas. Nas Meditações, Descartes pretende pôr tudo sob dúvida e fazer dessa dúvida “hiperbólica” o caminho que levaria a estabelecer fundamentos sólidos para o conhecer. Não podemos — sustenta Peirce — partir de uma tal dúvida. Não nos é possível “começar com uma dúvida completa”. Pelo contrário: “Devemos começar com todos os preconceitos que atualmente temos quando entramos no estudo da filosofia”1. Isso vai contra tudo o que a tradição filosófica sempre exigiu e que se costuma ensinar aos estudantes que ingressam num departamento de filosofia. Pois tanto os empiristas como os racionalistas modernos, por exemplo, querem obrigar-nos a expurgar de nossa mente todas aquelas noções obscuras, nossas crendices, nossos preconceitos, nossas idéias infundadas. Platão não pedia menos quando negava valor cognitivo aos dados sensíveis e defendia o uso puro da razão. Uma idéia semelhante manteve um dos fundadores da filosofia analítica, Ludwig Wittgenstein, no seu clássico Tractatus Logico-Philosophicus: demonstra-se o absurdo e o pseudo-saber por meio de uma análise lógico-matemática da linguagem. Há, então, de um lado, o espúrio, o obscuro, o indefinido, o falso; de outro, o claro, o distinto, o verdadeiro.
Peirce afirma que tais preconceitos são o que realmente temos e não seriam eliminados como que por um conjuro, por uma máxima. Por quê? Porque “são coisas que não nos ocorre que possam ser questionadas”. Não podemos questionar tudo em que acreditamos; se pudéssemos, com que começaríamos? Como começaríamos a repensar as coisas… Com que reiniciaríamos nosso raciocínio? Com nada, certamente, é impossível. Portanto, tudo não pode ser posto em dúvida ou sob suspeita — que é o que Descartes pretende. Assim, Peirce sentencia: “Não pretendamos duvidar em filosofia o que não duvidamos no nosso coração”. (Ibid.)
Outra idéia cartesiana central, que Peirce critica, é aquela segundo a qual “qualquer coisa que eu conceba claramente é verdadeira”. Uma dessas idéias, por exemplo, poderia ser esta famosa afirmação que parece universal, necessária e absolutamente verdadeira: “O todo é maior que suas partes”. Mas isso não é verdadeiro, por exemplo, se levado no estrito sentido universal. Ou seja, não é verdadeira em todos os campos que possamos pensar. Esse princípio, de fato, não é verdadeiro para conjuntos infinitos. Com efeito, o conjunto dos números inteiros positivos não é maior que uma de suas partes, o subconjunto dos números pares. Vi essa prova em Bertrand Russell: se colocamos os dois conjuntos (o conjunto e o subconjunto) em pares ordenados, para cada membro do conjunto: 1, 2, 3, 4, …( n), acharemos um membro do subconjunto dos números pares: 2, 4, 6, 8, … (n x 2). Assim, se a cada número do conjunto corresponde um número do subconjunto, o seu dobro, é falso que o todo seja necessariamente maior do que a parte. Neste caso, a parte é tão grande quanto o todo, pois sempre aparecerá um número ao lado de qualquer que acrescentemos: seu dobro!
O conhecimento é uma conquista social. É o resultado de esforços, tentativas, falhas e sucessos. Falhas e sucessos que podem ser decididos publicamente, não no interior da nossa individualidade. Por isso, Peirce adverte: “Mas fazer assim de indivíduos isolados juízes absolutos da verdade é extremamente pernicioso”!
A leitura de Peirce veio numa hora certa. Representou um momento de verdadeira emancipação no meu crescimento intelectual e filosófico. Há pensadores que enclausuram seus seguidores, outros lhes dão asas e abrem suas jaulas. Peirce é como os últimos. Esta é minha homenagem.
1 Peirce, C. S. Selected Writings. (Values in a Universe of Chance). Wiener P. Philip, ed. New York: Dover Publications, s.d., p. 40.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |