Quem teme a discussão porque teme o erro, teme, no fundo, a própria verdade
Talvez seja correto chamar os tempos em que vivemos de ‘época de incertezas’. Não seria essa a descrição adequada do ambiente que se respirava no mundo quando comecei a estudar filosofia, no início dos anos 70. O que então se vivia penso que se poderia chamar de ‘época de opções’. Refiro-me às opções históricas, políticas e econômicas que a realidade então nos oferecia. Apoiar os regimes ditatoriais ou lutar contra eles, apoiar a intervenção norte-americana em Vietnã ou defender o direito dos povos de decidir seu futuro etc. Os intelectuais naqueles anos sabiam que opções havia e, claro, tomavam partido. Podiam apoiar a política externa norte-americana ou a soviética. Havia, também, a opção maoísta, fruto da cisão sino-soviética, que levou à divisão e fragmentação da esquerda na Europa e na América Latina. Foi assim que as teorias políticas se inseriram nesse leque de possibilidades. O mundo — e certamente a América Latina, que era meu mundo — podia realmente ser de uma maneira ou de outra. Podia, isto é, se organizar política e economicamente de uma maneira radicalmente diferente de outra.
Tão diferente, aquele tempo, da realidade de hoje em que a maioria das pessoas parece estar convencida de que não existe outro caminho que não seja o da incerteza da globalização. Parece que vivemos num presente sem alternativas e enfrentamos um futuro sem opções.
Outros ventos sopravam trinta anos atrás. Repito: quando entrei na universidade sabia que devia optar ideológica, política e filosoficamente. Isso pressupunha que sabia que umas opções deviam estar equivocadas. Que não indicavam o caminho que devíamos tomar. Elas, e as teorias que as defendiam.
Não foi para mim uma surpresa, portanto, que, tanto na filosofia política como nas demais áreas da filosofia, encontrasse novas alternativas e confrontos teóricos. Seja o que for que estudasse, sempre me perguntava: “isto está certo ou errado?” Nesse sentido, sempre procurei duas coisas: entender e descobrir a verdade. Essa é a razão por que insisto na tese de que quem escreve diz uma coisa e não outra, mantém uma determinada tese, isto é, e, em segundo lugar, de que o que escreve pode estar certo ou errado. E como é muito difícil, se não impossível, estar completamente certo ou totalmente equivocado, a busca desses matizes e gradações de erro e acerto faz da reflexão filosófica, e da leitura de outros filósofos, um desafio apaixonante: em que pontos e em que medida nossas teorias e as dos outros têm razão, em que aspectos e até onde estão equivocadas?
É decisivo, portanto, ter presente nossa ignorância e nossa falibilidade para, talvez, nos aproximarmos da verdade e do conhecimento. O estudo da história da filosofia, assim como o da história das ciências, é importante para nos mostrar os erros, não só os acertos, de filósofos e cientistas. Erros importantes, certamente, por terem mostrado a necessidade de rever teorias e iniciar novas pesquisas. Importantes e mesmo decisivos, mas, de qualquer modo, erros.
Popper talvez seja o filósofo que pensou de maneira mais original a questão do erro no que podemos chamar em geral teoria do conhecimento, filosofia da ciência ou epistemologia. Popper mostra a importância do erro e, claro, de termos consciência dele. Enquanto outros epistemólogos se debruçaram sobre as questões da verdade e da verificação, na filosofia e na ciência, ele destacou a importância do erro e fez da ideia de falsificação a base de uma teoria clássica na filosofia da ciência. Nela, Popper defende que o estatuto científico de uma teoria está determinado pela possibilidade de demonstrarmos que a teoria é falsa, não verdadeira.
Vimos que na Introdução de Conjecturas e refutações, criticando tanto empiristas como racionalistas, chega à conclusão de que não há fontes privilegiadas do conhecimento. Afirma, pelo contrário, que qualquer coisa pode servir de fonte — ou pretexto, motivação ou indício — para se chegar a algum conhecimento, mas é enfático ao dizer: nenhuma fonte tem autoridade.
Por não ser hoje nosso assunto, não vamos entrar no mérito dessa teoria tão influente e tão debatida. Passemos a outra proposta de Popper que hoje nos interessa. Se a questão das fontes privilegiadas está fundamentalmente equivocada, que nos deve preocupar? Devemos nos preocupar, diz, com esta pergunta completamente diferente: “Como podemos ter a esperança de detectar e eliminar o erro?”[1]
A resposta que dá parece simples demais, mas está carregada de consequências. Vejamos: A resposta adequada à minha questão ‘Como posso ter esperança de detectar ou eliminar o erro?’ é, acredito, ‘Por meio de criticar as teorias ou palpites de outros e — se podemos treinar a nós mesmos para isso — criticando nossas próprias teorias e palpites’.” (Ibid., p. 26)
As consequências às quais me referia se relacionam com o modo como de fato se faz filosofia (desde os gregos) e ciência (desde que esta começou). Popper tem razão: é naqueles lugares em que existe a tradição da discussão entre pares — com suas críticas, objeções e respostas às objeções — que existe ciência e filosofia.
Há outros lugares em que, lamentavelmente, os intelectuais ignoram olimpicamente o que seus pares andam fazendo. Ninguém quer discutir nada de ninguém. Ou, pior, talvez ninguém quer, simplesmente, discutir nada. Isso é grave porque, muito provavelmente, só podemos realmente discutir se temos algo a propor. Caso contrário, e na ausência de ideias, problemas e assuntos próprios, o jeito seja limitar-se a comentar o que se faz em outros lugares ou que se fez no passado.
Tendo problemas podemos buscar soluções, propondo-as, errar; errando, podem nos apontar as falhas, cientes das nossas falhas, aproximar-nos da verdade. Como nossos erros são infindáveis, interminável é o caminho que nos leva longe deles e perto da verdade. São os caminhos trilhados pelos verdadeiros cientistas e os verdadeiros filósofos. É o caminho de quem quer saber, de quem tem urgência de conhecimento por ter certeza de quão pouco sabe. É o caminho sem limites nem promessas da filosofia.
[1] Ibid., p. 25.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |