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Popper e a praticidade da filosofia

A ideia da superioridade européia traz consequências funestas para os que insistem em pensar que, como povo, não prestam

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            O título desta seção pode parecer estranho. Mas já tratei das ideias que Popper tinha sobre as consequências práticas da filosofia e, em particular, sobre as consequências políticas. Em Conjecturas e refutações, Popper, entre outras coisas, mostra a relação estreita entre uma teoria do conhecimento pessimista e o autoritarismo político. Se refletirmos sobre seus argumentos podemos ver realmente a estreita relação entre uma coisa e outra. A tese de que, por exemplo, o ser humano não pode conhecer pode estar relacionada a uma visão negativa do ser humano. O ser humano, talvez por ser naturalmente incapaz ou indigno, estaria fadado a não conhecer. Se esse for o caso, ele talvez deva ser levado a aceitar certas verdades por meios brutais. A tese de que a maioria dos homens são incapazes de conhecer aceita uma exceção, a de que alguns, por esse ou aquele motivo, estão especialmente dotados para aceder ao conhecimento e comunicá-lo aos demais. Esses são os membros de uma casta privilegiada. Assim, o que eles determinam que seja a verdade, a maioria deve aceitar. Com efeito, não se precisa de grande perspicácia para se perceber a estreita relação entre certas ideias e suas consequências políticas.

            Popper, com razão, lembra que a Renascença foi uma luta contra o autoritarismo da fé. Insistia-se, contra a inquestionabilidade dos dogmas, na capacidade que o homem possui para, por seus próprios meios, descobrir e entender o porquê das coisas do mundo e do próprio homem. É difícil imaginar as reações provocadas pela descoberta de um novo continente, pelas notícias que davam conta de outros seres humanos com tecnologia e conhecimentos avançados e, finalmente, pela constatação, com a circunavegação do globo, de que a Terra era esférica. Esse último fato, em particular, deve ter causado um impacto profundo, pois como entender que as coisas no outro lado do planeta não caíam para o vazio… para “abaixo”… Sem dúvida, todos esses episódios exigiram uma modificação profunda nos parâmetros conceituais que vigiam até então. E, naturalmente, levaram a uma modificação radical na visão que os europeus tinham do mundo, de si mesmos e do universo. (Mas, note-se, de si mesmos, europeus, e dos não-europeus.)

            As grandes navegações, o desenvolvimento do comércio, o progresso tecnológico, a necessidade de novas tecnologias e a decorrente invenção de novas máquinas. Tudo isso faz parte de um processo intimamente relacionado que desemboca no nascimento da ciência moderna e na revolução tecnológica e industrial. Fatos influenciavam para que se abandonem dogmas, se modifiquem os esquemas conceituais e se adotem novas ideias — novas ideias que, por sua vez, incidiram na ocorrência de novos fatos e que levaram a profundas alterações na vida daqueles que viviam tanto no velho continente como os que habitavam territórios descobertos. Talvez, a Europa nunca viu um processo tão rápido de mudanças — processo que poderia ser descrito como o período em que uma revolução seguia a outra.

            Popper faz uma série de reflexões pertinentes sobre essa época e os homens que tentaram entendê-la. Ao fazê-lo, ajudaram na continuação desse processo de revoluções seguidas por outras. Lembra Bacon e Descartes.

O nascimento da ciência moderna e da tecnologia moderna foi inspirado por essa epistemologia otimista [de que a verdade é manifesta] cujos principais porta-vozes foram Bacon e Descartes. Eles ensinaram que não havia necessidade de que qualquer homem apelasse a autoridade ao se tratar da verdade, porque cada homem carregava as fontes do conhecimento nele mesmo; seja no seu poder de percepção sensível (…) seja no seu poder de intuição intelectual (…).[1]

            O homem europeu sentiu-se capaz e estendeu essa ideia da capacidade racional ao homem em geral. Não obstante, tal poder e tal capacidade foram dadas a um homem em abstrato que foi feito à imagem e semelhança do homem europeu. Todo avanço e todo progresso dos europeus foi atribuído a essa capacidade, mas, ao mesmo tempo, devia-se explicar o atraso de outros povos. A afirmação do homem europeu trouxe, simultânea e paradoxalmente, a desvalorização de outros considerados inferiores.

            A conquista da América, lamentavelmente, não foi só uma conquista territorial em que os invasores se limitaram a matar, exterminar ou saquear as riquezas deste continente, foi também a invenção e imposição de uma imagem que caberia ao homem americano — que coube, particularmente, àqueles que habitaram os territórios situados ao sul do Rio Grande, isto é, o território que hoje vai de México até Argentina.

            As ideias sobre homens ou raças superiores e inferiores tiveram, e ainda têm, profundas consequências políticas e culturais. Os habitantes de certas regiões do globo pensam, de si mesmos, que podem tudo. Já outros, que não prestam. A filosofia da superioridade européia tem como consequência prática a divisão internacional do trabalho. Contra essa imagem e essa ideia, que alguns de nossos povos herdaram, e acataram, é que ainda devemos lutar. Luta que deve ser lutada, primeiro, no âmbito da filosofia, porque mudando-se  as ideias se pode mudar o mundo.


[1] Ibid., p. 5.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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