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Popper e suas epígrafes

Suas epígrafes são pequenas dicas para entendermos profundos  pensamentos

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Pelas suas epígrafes os conhecereis… Este poderia muito bem ser um provérbio que se aplica aos escritores, em geral, e que vale também para os filósofos. Em Conjecturas e refutações, Popper começa alguns capítulos lançando mão delas. Na Introdução (“Sobre as fontes do conhecimento e a ignorância”) encontramos não só uma, mas cinco epígrafes. Na página da esquerda, mais ou menos no centro dela, duas, sem outro texto que as acompanhe. Na página da direita, logo depois do título da introdução, mais três. As duas da esquerda mantêm teses com as quais Popper concorda. As outras três são as que vai criticar nessa introdução.

            Comecemos pelas duas primeiras.

Mas eu deixarei o pouco que tenho apreendido se adentrar no dia para que alguém melhor do que eu possa adivinhar a verdade, e no seu trabalho possa provar e rebater meu erro. Frente a isso eu me regozijarei pelo fato de eu ser um meio através do qual a verdade tenha vindo à luz (Albrecht Dürer).

Eu posso agora me regozijar na falsificação de uma teoria estimada, porque inclusive isso é sucesso científico (John Carew Eccles, Prêmio Nobel de Medicina, 1963).

Essas duas epígrafes têm a ver com o falibilismo, seu famoso critério de demarcação entre ciência e pseudociência. Como vimos, ele consiste em afirmar que o estatuto científico de uma teoria está dado pelo grau de falsificação dela. Pois, segundo afirmara antes, só teorias científicas podem ser refutadas. Uma consequência dele é que a refutação de uma teoria pode nos aproximar do conhecimento ao mostrar-nos que algo há nas nossas teorias que está equivocado.

            À diferença dos autores das epígrafes citadas, um grande pintor e um cientista, as seguintes são de três conhecidos filósofos. Na verdade, de três clássicos do pensamento moderno:

Segue-se, então, que a verdade se manifesta por si mesma… (Espinosa).

Todo homem carrega em torno de si uma pedra de toque (…) para distinguir (…) a verdade das aparências (John Locke).

…é impossível para nós pensar alguma coisa que não tenhamos previamente sentido, seja pelos sentidos externos, seja pelos internos (Hume).

            Aquelas são precisamente as teses que Popper pretende refutar. Para isso, o filósofo apresenta alguns argumentos dignos de consideração. Entre outros, pensa que a teoria de que a verdade é evidente tem estreitos vínculos com o autoritarismo político. Com efeito, se houvesse verdades evidentes, quem não as aceitasse só poderia ter razões suspeitas para fazê-lo — pois quem não se curva perante o evidente? Assim, os que se opunham a determinadas verdades consideradas evidentes — afirmando, por exemplo, que a Terra era redonda, ou que era o centro do nosso sistema solar — deviam ser perseguidos. Foi o caso de Giordano Bruno e Galileu, por exemplo.

            De qualquer modo, Popper reconhece a importância de valorizarmos os sentidos e o pensamento humanos como via de acesso ao conhecimento, numa época em que era importante criticar os dogmas e o poder da igreja católica, isto é, dos papas, considerados infalíveis, e dos monarcas absolutos. Seu poder e suas decisões eram inapeláveis. Mas a luta contra o autoritarismo da igreja e dos reis, paradoxalmente, termina num outro autoritarismo, seja o do empirismo, seja o do racionalismo. O problema é que se passou de certas verdades absolutas e inquestionáveis (as verdades reveladas) para a defesa de certas faculdades humanas consideradas infalíveis (como a razão, para os racionalistas). Tanto no empirismo como no racionalismo haveria aquela pedra de toque, aquele critério último e inquestionável para determinarmos o que é absoluta e definitivamente verdadeiro. Popper não nega a importância de os filósofos modernos terem valorizado as faculdades humanas afastando-se do autoritarismo de quem defendia a revelação opondo-a à razão, mas percebe que, ao se desenvolverem, essas correntes de pensamento terminaram em novas formas de autoritarismo. Nesse sentido, as duas correntes estão equivocadas. Assim, e em poucas palavras, as cinco epígrafes resumem muito do que Popper defende e crítica. Basta entendê-las para entender o filósofo.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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