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Popper lendo Hume, Kant e Russell

O cético em ciência pode estar fundamentando o autoritário em política

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Na sua Introdução a Conjecturas e refutações, Popper faz referências a vários filósofos. De fato, o livro todo está repleto de menções (umas favoráveis, outras nem tanto) a alguns dos filósofos mais consagrados do pensamento ocidental. Ocupar-me-ei, nesta seção, das referências a três filósofos em particular. Dois britânicos, e empiristas, um alemão, e idealista. Isso, na verdade, é um pretexto meu para discutir brevemente um assunto que me interessa, o da crítica entre filósofos e as razões para tais críticas.

            Na breve segunda seção dessa Introdução, Popper levanta a questão da praticidade ou aplicabilidade da filosofia. Pois, realmente, a filosofia tem alguma conseqüência prática? Possui ela alguma aplicabilidade? Não só leigos pensam que ela está longe de ter algo a ver com a prática ou com aplicações concretas. Naquela seção, Popper menciona “alguns filósofos recentes” que “têm desenvolvido uma doutrina sobre a essencial impotência e irrelevância prática de toda filosofia genuína”.[1] (Ele não diz que filósofos recentes tem em mente.) Mas o que o levou a esse problema é uma afirmação de Hume (1711-1776), para quem “pelo caráter remoto, abstração e irrelevância prática de alguns dos seus resultados [isto é, da teoria do conhecimento], nenhum dos seus leitores acreditaria neles por mais de uma hora”. (Ibid., p. 4) Notemos, no entanto, que Hume não está se referindo à filosofia, mas unicamente à teoria do conhecimento, pelo que não podemos inferir daí que o filósofo escocês tenha mantido tal posição com respeito à filosofia em geral. De qualquer forma, Popper discorda de Hume e lembra as posições de Kant (1724-1804) e Russell (1872-1970):

A posição de Kant era diferente. Ele pensou que a pergunta “Que posso conhecer” era uma das três mais importantes questões que uma pessoa podia perguntar. Bertrand Russell, apesar de estar mais perto de Hume em temperamento filosófico, parece situar-se nessa matéria do lado de Kant. E penso que Russell está certo quando atribui à epistemologia consequências práticas para a ciência, a ética e inclusive a política. (Loc. cit.)

            Temos, então, a discordância e a concordância entre quatro importantes filósofos. De um lado Hume, para quem a teoria do conhecimento, ou epistemologia, não teria consequências práticas; de outro, Kant, Russell e Popper. (É bom que as pessoas que querem entender o que é a filosofia e se adentrar nela percebam isto: ela não é o acúmulo de verdades eternas com as quais todos os filósofos concordam. A passagem de Popper prova isso, mostra como filósofos importantes, ele incluído, discordam das teses de outros filósofos, também importantes, que consideram falsas. O que significa que, com efeito, na filosofia também há teses falsas, do mesmo modo que na ciência.)

            É importante perceber que Popper não só está falando de conseqüências práticas dentro do campo da ciência. Ele está afirmando uma tese muito mais forte: a epistemologia tem conseqüências práticas na ciência e na ética, e também na política! Qual seria a relação? Quem, por exemplo, admite esse relativismo estreito segundo o qual o que é verdade para mim não é verdade para outro, pode ser levado a um ceticismo político nefasto. Acreditar na possibilidade do império da lei implica em pôr a lei por cima dos indivíduos particulares, juízes e representantes do povo incluídos. Significa conceber a lei como um valor objetivo, independente dos valores subjetivos. Popper pensa que a negação da lei como valor objetivo, ou a afirmação de que não podemos conhecer tais valores objetivos — como defende o ceticismo ou o agnosticismo epistêmicos —, favorece o autoritarismo e pode levar ao totalitarismo. Seja como for, notemos que a leitura que Popper fez de Hume, Kant e Russell está intimamente relacionada com a conclusão que perseguia: a filosofia tem profundas e graves consequências práticas, éticas e políticas.


[1] Ibid., p. 5.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

Marcos Carvalho Lopes

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