A possibilidade de ‘leituras’ pressupõe a existência de sentidos
Muitas coisas ligam Popper e Wittgenstein. Os dois eram austríacos, se conheceram e tiveram enorme influência na consolidação do que poderíamos chamar de positivismo filosófico da primeira metade do século 20. Os nomes dos dois filósofos estão intimamente ligados ao Círculo de Viena e exerceram uma enorme influência nos seus membros. Os pontos de acordo entre os dois talvez não sejam muitos; grande, porém, o número de suas divergências. Uma delas está relacionada com a compreensão do que seja um problema filosófico.
Lembremos que, para o Wittgenstein do Tractatus, a filosofia não é mais do que um conjunto de pseudoproposições. Elas não são falsas nem verdadeiras, simplesmente não têm sentido. Os enunciados que têm sentido, e por isso podem ser verdadeiros ou falsos, são os que referem fatos: os da linguagem comum e os da ciência.
Uma profunda diferença se estabelece entre Wittgenstein e Popper ao defender, este último, que a função de um cientista e de um filósofo consiste em resolver, respectivamente, problemas científicos e filosóficos. O que, obviamente, contradiz a tese de Wittgenstein de que, simplesmente, não existem problemas filosóficos. Vejamos a leitura que Popper faz de Wittgenstein:
Mas há problemas filosóficos? A presente posição da filosofia inglesa (…) se origina, eu penso, na doutrina do falecido professor Ludwig Wittgenstein [1] de que não há; de que todos os problemas genuínos são científicos; de que os pretensos problemas filosóficos são pseudoproblemas; que as pretensas proposições ou teorias filosóficas são pseudoproposições e pseudoteorias; que elas não são falsas (se fossem falsas suas negações seriam proposições ou teorias verdadeiras) mas combinações de palavras estritamente carentes de significado, não mais significativas que o incoerente balbuciar de uma criança que não tem aprendido a falar com propriedade.[2] (Grifos no original.)
Vemos aqui, neste resumo, como um grande filósofo lê outro grande filósofo. Quem leu o que Wittgenstein afirma no Tractatus poder dizer que o de Popper é uma fiel reprodução de algumas de suas teses centrais sobre o que é a filosofia.
Nesta série sobre a leitura entre filósofos empreguei a expressão “leitura de” sem defini-la ou explicá-la suficientemente. Queria explorar os sentidos em que últimamente se usa a expressão “ter uma leitura de”. Há, naturalmente, vários sentidos em que podemos usar a expressão. Poderia ter intitulado esta seção “A leitura popperiana de Wittgenstein”. Poderia comparar essa às leituras que Quine ou Carnap teriam feito do mesmo texto de Wittgenstein. Disse na seção anterior — lembrando outras ocasiões — que quem escreve algo o faz para dizer uma coisa e não outra. Como conseqüência disso, se quem escreveu o texto o fez de forma clara, não ambígua, o leitor deverá compreender uma coisa e não outra, e isso não será senão o que o autor disse e tentou dizer.
Aceito, no entanto, que possa haver uma leitura popperiana, uma quineana e outra carnapiana, e as três não serem coincidentes. Significa isso que estou me contradizendo e aceitando agora que cada qual faz a leitura de um texto como a bem entender? Não, pois a leitura que qualquer pessoa faça das teses de Wittgenstein sobre filosofia — como estão no Tractatus — deve coincidir com o resumo que delas fez Popper. Pois quem sabe ler tem de entender o que Wittgenstein diz e quis dizer sobre filosofia nesse texto: que toda ela é um conjunto de proposições, não falsas, mas carentes de sentido etc. No entanto, é perfeitamente possível que elaboremos a partir da nossa própria avaliação das teses de Wittgenstein. Uns, talvez, concordarão com elas totalmente, outros parcialmente. Outros discordarão, do mesmo modo, parcial ou totalmente. Assim, por exemplo, duas pessoas que discordam parcialmente não necessariamente o farão sobre as mesmas teses e pelas mesmas razões. A diferença nas discordâncias, obviamente, fará que suas críticas, como um todo, resultem diferentes entre si. E essas diferenças obedecerão a posicionamentos filosóficos diferentes, a motivações diversas, a objetivos distintos etc. Os resultados finais de suas críticas a Wittgenstein poderão — e, sobretudo, deverão — divergir. Os resumos das teses desse autor, entretanto, deverão coincidir e só poderão ser semelhantes ao que Popper fez, não podendo, por exemplo, atribuir ao Wittgenstein do Tractatus a tese de que há problemas filosóficos autênticos.
Em resumo, o sentido mais amplo de ‘ter uma leitura de’ que aceito é este: a partir da compreensão das teses de um autor, a avaliação ou incorporação dessas teses no meu pensamento determinarão que escreva um texto que possam chamar de “minha leitura de Wittgenstein”. Mas essa expressão não quer dizer que eu tenha atribuído ao autor as teses que me deu vontade atribuir, mas que, a partir da compreensão do que o autor disse, eu talvez incorporei a suas afirmações outras que eu mesmo fiz, elaborei a partir delas ou de outras, alterando, ampliando, limitando ou corrigindo as afirmações originais do autor.
Assim, é claro que, lendo e analisando as mesmas passagens, Popper, Carnap e Quine desenvolveriam textos diferentes. Mas não poderiam fazer resumos contraditórios, digamos, das mesmas teses e passagens. Podem, isso sim, terminar construindo textos diferentes, mesmo diametralmente opostos, mas coincidindo em reproduzir e compreender, de um modo só, as teses centrais do autor em questão.
Quem leu Popper e Wittgenstein, então, tem que concordar com isto: um pensa que há problemas filosóficos autênticos (Popper); outro, que não existem problemas filosóficos, nem sequer teses ou proposições filosóficas, que a filosofia não passa de um conjunto de sem-sentidos etc. Isso os leva a conceber de maneira completamente diferente o que seja a tarefa filosófica. Para Wittgenstein, a filosofia deve mostrar que suas proposições não fazem sentido. Para Popper, a tarefa do filósofo é resolver problemas filosóficos.
Para terminar: nesta primeira parte quis mostrar como os filósofos se lêem entre si. Temos visto como um filósofo lê e critica outro. Mas, obviamente, a crítica é feita com base na compreensão da tese do filósofo lido (quem, na maioria quase absoluta dos casos, escreveu para ser entendido). (É conhecido o caso de Heráclito, chamado o Obscuro, que intencionalmente escreveu num estilo enigmático por ódio da plebe. Parece que Vico fazia o mesmo, mas por outras razões.) De qualquer forma, por mais enigmático que possa ser o estilo de um autor, algo ele quererá dizer — com certeza, não tudo.
Notas:
[1] Wittgenstein morrera um ano antes da publicação deste trabalho, ou seja, em 1951.
[2] Popper, Karl. Conjectures and refutations. Nova Iorque : Basic Books, 1962, p. 68.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |