Foi uma leitura crítica da contemporaneidade que deu lugar ao que conhecemos hoje como filosofia da ciência
ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*
O austríaco Karl R. Popper (1902-1994) é um desses filósofos cuja leitura é um prazer. Escreve de maneira clara, direta e, sobretudo, apaixonada. Poderia parecer muito difícil que alguém juntasse todos esses atributos, mas esse pensador os reúne. Além de escrever dessa maneira, ele contribui decisivamente na construção e consolidação de toda uma área na filosofia. Com efeito, podemos considerá-lo um dos primeiros grandes filósofos da ciência. Há outros pensadores da ciência anteriores a Popper, como Henri Poincaré, físico e matemático francês, que refletiram sobre o conhecimento científico. Mas Popper se destaca por ter escrito obras de enorme influência. Uma delas é A lógica da pesquisa científica, de 1935.
Interessa, no entanto, a maneira pela qual Popper consegue abrir esse novo campo de pesquisa conhecido como filosofia da ciência. Em Conjecturas e refutações (de 1963) — obra que eu muito recomendo —, o filósofo conta como chegou a uma de suas mais importantes conclusões: o critério para distinguir ciência de pseudociência.
Popper explica que não agüentava mais conversar com os seguidores das teorias de Marx, de Freud e de Adler já que tudo o que ocorria, segundo eles, confirmava suas hipóteses. Assim, conta, tanto o que os jornais publicavam como o que não publicavam confirmava, para os marxistas, a teoria de Marx. O mesmo acontecia com a psicanálise e com as teorias de Adler. O filósofo pensava que algo de muito errado escondiam essas atitudes. Pois, por exemplo, se havia levantamentos operários, a teoria de Marx era confirmada, mas se não ocorriam, também. Se alguém tinha um distúrbio psicológico qualquer, isso confirmava as teorias de Freud ou de Adler, mas se o distúrbio era outro, ou não havia nenhum distúrbio, tais teorias eram igualmente confirmadas — mesmo que por meio de alguma nova hipótese arbitrária. A confirmação, portanto, não podia ser o critério de cientificidade de uma teoria.
No entanto, um episódio científico trouxe luz ao problema. Tratava-se da ocorrência de um eclipse que deveria dar determinados resultados. Tais resultados poriam a prova hipóteses de Einstein. Com efeito, o físico alemão tinha declarado, em relação ao eclipse, que se os resultados observados fossem contrários ao que ele esperava, sua teoria cairia feito cinzas.
Até aquela época, os teóricos do conhecimento e da ciência imaginavam que uma teoria, caso fosse verdadeira, poderia e deveria receber confirmação empírica. Mesmo hoje muitos acreditam que o que dá estatuto científico a uma teoria é a possibilidade de ela ser confirmada. Popper percebeu que, pelo contrário, se formos por confirmações, a astrologia seria uma ciência. E se o leitor parasse para pensar, poderia perceber qual é o modus operandi dos adivinhos. Eles são pagos por incautos por informar-lhes que estes estão com problemas, que têm tais sofrimentos, que ocorreram problemas ou discussões com pessoas muito próximas, que muitas expectativas não foram realizadas e que há uma grande paixão à espera. Bom, o fato é que isso é verdade para qualquer ser humano que vive uma vida normal. Ninguém está livre de problemas, todos nós temos algum sofrimento nas nossas vidas e só podemos ter problemas e discussões com pessoas próximas, porque, por princípio, dificilmente os teríamos com pessoas distantes — para não falar de expectativas ou de paixões.
Popper chegou à conclusão que o critério que distingue ciência de pseudociência é, não a possibilidade de confirmarmos teorias, isso podemos fazer até com as teorias dos adivinhos, mas justamente o oposto: a possibilidade de as teorias serem refutadas. Chegou a esse resultado justamente pelo episódio do eclipse e a declaração de Einstein. Popper, então, propôs assim o seu famoso critério de demarcação entre ciência e pseudociência — conhecido como “critério de falsificação”. O que isso significa é que uma teoria é científica na medida em que podemos refutá-la. Para podermos refutá-la, ela deve indicar os meios para fazê-lo. Como? Proibindo que certos eventos ocorram. Uma boa teoria, segundo Popper, é mais proibitiva do que permissiva. Para os leitores de tarô, tudo pode acontecer, para os cientistas, nem tudo é possível, e há coisas que, certamente, jamais poderiam acontecer. Se elas acontecem, então é a teoria que está errada, não a natureza.
*Gonçalo Armijos Palácios José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009. |
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção |