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Por que a Legião Urbana?

Quando ouvi a Legião Urbana pela primeira vez achei que era um grupo com vários vocalistas. Era desse jeito que eu procurava entender a multiplicação de lugares de fala e a extensão vocal de Renato Russo em canções como Eu era um Lobisomem Juvenil. Nunca fui à um show da Legião. Demorou mais de um ano entre essa primeira audição e o momento em que vi uma foto do grupo. Eles praticamente não apareciam na mídia, o que me fazia estranhar “como” eram conhecidos. Tenho dúvidas se isso de não aparecer na televisão criava também certa possibilidade de ser mais anacrônico ou todo adolescente é que acredita estar descobrindo sempre “coisas inéditas”. Na década de 90 isso ainda tinha algum sentido, já que se a adolescência foi inventada nos anos 50, erámos mais ou menos a segunda geração que tinha commaxresdefaulto virtude a possibilidade de autocriação a partir de produtos de consumo de massa como as canções, os filmes, os quadrinhos etc., mas erámos a primeira geração a crescer dentro de um ambiente democrático.

Naquele começo de década de 90 a cultura brasileira seguia o caminho desastroso em que também estavam a política e a economia: a esperança democrática ganhava, no mainstream, ares de melancolia. Na crise era melhor não correr riscos, buscar o lucro mais fácil e aquilo que trouxesse a certeza de audiência. Humberto Gessinger costuma destacar a mudança e a perca de espaço que o rock nacional e a MPB tiveram quando surgiu a medição de audiência ao vivo: se aqueles nomes pareciam ter seguidores fiéis, isso não se traduzia em interesse da população de todas as classes sociais. O desejo popular pedia algo mais simples, fácil, novo e emotivo. Não se tratava mais de representar ou de pensar o país, mas de esquece-lo. Esquecimento que não ia muito longe, já que o tipo de afeto autoritário e cordial que justificou e deu sustentação ao golpe militar, ganhava os palcos principais em suas versões mais alienadas, reivindicando ser os representantes autênticos do Brasil.

No interior de Goiás, na metade dos anos 90 não estávamos mais no auge do tsunami sertanejo. Mas as canções sertanejas eram algo tão comum nas rádios e na tevê, que, por osmose, adquiri uma espécie de “inconsciente musical sertanejo”: sem querer conheço um monte de canções que faziam parte daquele momento, mas que não tiveram lugar na minha autoformação. Tiveram lugar na minha “formação”, naquilo que vem de fora e em relação ao qual é preciso resistir para afirmar uma diferença, adensar o silêncio, para decantar a tristeza em pretensão de diferença. Essa “diferença” podia muito ser encontrada na celebração de bandas de rock internacional bacanas, que naquele momento ocupavam o topo das paradas e a capa das revistas. Mas eu não entendia inglês e não tinha acesso aos encartes para tentar traduzir aquilo que diziam, essa defasagem também era parte do lugar e da classe.

A Legião Urbana me ajudou a perceber ou aceitar a diferença e os conflitos entre o que qualquer adolescente é, o que ele quer ser e o que ele pode ser. Suas canções me ofereceram o desvio de uma autocelebração narcisista de um “eu masculino” patriarcal e decadente, que vinculando a autenticidade com a celebração das raízes, inventa desculpas para manter valores conservadores e não “crescer”, não se libertar do mundo de seus pais. Sim, as narrativas do rock tem seus problemas, mas se nem durante a adolescência formos capazes de ir além daquilo que chamam de “realidade”, estamos fadados a ver crescer a autoridade dos mortos sobre os vivos. Coisa para se Temer – com maiúsculas, antes de tudo e sempre!

A Legião Urbana significou para mim um enigma estético, uma experiência que me causou interesse e desconforto. mas que na repetição daquela única fita pirata no rádio gravador, tornou-se a tradução do meu silêncio. De modo evidente e enigmático.

Quando ouvi pela primeira vez A tempestade, numa fita pirata em que a metade do álbum não estava, tive uma certeza: Renato Russo estava se despedindo.

Mais tarde perdi muitas das certezas, mas mantive a ingenuidade necessária para acreditar que seria capaz de traduzir a filosofia da Legião Urbana em um livro. Este projeto, no entanto, só ganhou vida porque quando comecei a trabalhar como professor no Ensino Médio, em 2001, ganhei dos estudantes a cobrança necessária. O livro só saiu em 2012, lançado sem publicidade numa segunda-feira chuvosa em um shopping caro do Rio de Janeiro, numa livraria badalada, com a presença de poucas pessoas. Estes amigos talvez tenham ficados mais desconfortáveis do que eu, que saboreava o champanhe oferecido pela livraria, enquanto na mente lembrava do começo do álbum Uma outra estação: “Eu já sei o que eu vou ser, ser quando crescer…”.

Baixe a prévia do livro aqui: http://www.mercado-de-letras.com.br/resumos/pdf-27-03-12-23-07-48.pdf

Link para comprar o livro : http://www.mercado-de-letras.com.br/livro-mway.php?codid=284

Marcos Carvalho Lopes

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